Horla está hospedado em minha casa e confesso que já começo a ficar farto. Apareceu num domingo chuvoso, estava eu de pijama a tentar escalfar um ovo para atirar sem piedade às ervilhas da Iglo, quando tocam à porta.
A um domingo só pode ser uma Testemunha de Jeová o Homem do Círculo de Leitores ou um iconoclasta qualquer.
Decidido a fingir que não estava em casa, espreitei pela TV interna das escadas, mas não vi ninguém. Espreitei pelo ralo e apenas o tapete felpudo do meu vizinho da frente se aventurava no meu campo visual. Entreabri a porta, e foi então que senti uma espécie de calafrio, como se uma brisa gelada soprasse pelo corredor dentro.
– Brrrrr! Está um frio de rachar.
Era uma voz alegre e à vontade, parecida com a de um calista de Algés, que agora é vendedor da Herbalife.
Esfreguei os olhos, mas não vi ninguém. Talvez fosse o eco da ressaca.
– Então, não fiques com esse ar. Eu sou o Horla, foi o Guy de Maupassant que me deu a tua morada.
– Fechei a porta, combalido e avancei rapidamente para o bar, sólida fortaleza para o sobrenatural.
– Excelente ideia, para aquecer os espíritos nada como um brandy. Eu cá não posso, as minhas úlceras … mas um cacau quente, ou um copo de leite sabiam-me bem.
-Depois de ter derramado um super-petroleiro de whisky no meu copo, fui obedientemente à cozinha, como que guiado por uma vontade hierarquicamente superior, preparei um cacau quente e cancelei as ervilhas.
Regresso à sala e lá não estava ele, refastelado no meu pufe. Apesar de Horla ser invisível, o pufe fazia uma cova e assim a sua presença tornava-se notada. Estendi a caneca de cacau em direcção ao pufe e senti uma força invisível erguê-la no ar. A caneca de cacau levitou graciosamente como num filme de desenhos animados.
– Humm! Bom cacau! O Guy bem me disse que eras bacano.
– Então o Horla contou-me a sua longa história.
Era um ser invisível de boas famílias, o pioneiro de uma nova raça superior que estudava a humanidade para ver se ela servia para alguma coisa.
Vivera numa favela em São Paulo e levara todo o mundo à loucura com os seus caprichos e a sua mania de beber água e leite às escondidas.
Teve de fugir de São Paulo escondido no porão de um navio porque se envolveu com uma mulata que era amante de Zé Pequeno, chefe de um gang, que lhe jurou tortura, privação de água e morte visível.
Foi parar a Rouen e abancou durante uns tempos em casa de Guy Maupassant, num solar rural nas margens do Sena.
– Ia dando com o Guy em maluco – gargalhou Horla
– Ele já não me suportava e um dia fechou-me no quarto e pegou fogo à casa. Morreram os criados todos, mas eu consegui escapar pela chaminé.
Na altura fiquei zangado, mas acabámos por fazer as pazes. Percebemos que o melhor para a nossa amizade era separarmo-nos. Ele deu-me a tua morada, e por isso cá estou.
Não me queres mostrar a casa?
– Compreendi então que aquela não era uma mera visita sobrenatural de cortesia, era um hóspede de longa duração que se preparava para acampar em minha casa. Horla, o ente invisível estava determinado em morar comigo.
Guiado por uma vontade estranha, como estivesse hipnotizado, mostrei a casa a Horla, arranjei-lhe umas toalhas às risquinhas e dei-lhe uma cópia das chaves. Sorriu amigavelmente e disse:
– Acho que disso não vou precisar.
As primeiras duas semanas da minha vida com Horla foram pacíficas. Era um pouco estranho chegar a casa e ver o comando da Playstation a pairar no ar, e uma voz aos urros – é golo, é golo!
Mas além disso, apenas tenho de deixar na mesa de cabeceira um jarro de água e um copo de leite, que desaparecem durante a noite, saciando o invisível hóspede lacto-aquófilo.
Os problemas começaram quando a Playstation se avariou e ele me começou a censurar quotidianamente:
– És um desleixado, quando é que mandas arranjar a Playstation? Não se faz nada nesta casa. É uma seca
– Já começava a ficar farto dos seus queixumes insuportáveis e para não o aturar, comecei a ouvir o Messias de Haendel para sua suprema irritação; começava a fungar ruidosamente e a teclar com os dentes na ária de contralto “But who may abide the day of is coming”.
Percebi então que a música erudita dava com o Horla em doido, e insisti nesta estratégia, aliás decalcada do filme “Mars Attack”.
Fui à FNAC e comprei uma colecção completa da Deutsche Gramophon, e a partir daí a minha sala parecia uma sala de concertos. Bach, Puccini, Mozart, Sibelius, Tchaikovski, Vivaldi, e Shostakovich eram os meus aliados para a defenestração do hóspede incómodo.
Horla fungava, assoprava, teclava com os dentes, grunhia, guinchava, lamuriava-se:
– Quero a Playstation, quero jogar Pro Evolution Soccer2.
Mas apesar das fúrias, não havia forma de Horla, a lapa invisível, ir arengar para outra freguesia.
Depois de consultar um volume da “História da Música” que o Homem do Círculo de Leitores me impingira, estudei cuidadosamente o mais adequado exorcismo sinfónico para espantar aquele espírito superior e superiormente maçador.
Uma noite preparei um cacau quente para Horla, um conhaque para mim e afinei a Pionner num nível decibélico razoavelmente perturbador.
Acendi um charuto, recostei-me na poltrona e convoquei nove trombetas, nove trompas, vinte e quatro oboés, doze fagotes e três pares de tímbalos.
No céu limpo e brilhante desenhava-se um festim de cor e luz – era noite de fogo de artifício encomendado por Isaltino de Morais para celebrar a sua reeleição.
O meu hóspede obrigatório parecia suspenso. Durante La Paix, uma siciliana lenta de subtis efeitos de eco, consegui escutar a respiração ofegante de Horla. Na “réjouissance” (Júbilo) regressam as trombetas e os tímbales, e um gemido vago e aterrorizado, emanava do habitualmente jactante pufe.
Finalmente, um allegro festivo provoca um grito lancinante e angustiado em Horla. Uma espiral de vento ergue-se em turbilhão e sopra pela janela fora como um redemoinho que se afasta com longínquo lamento, juntando-se ao fogo de artifício que lacrimeja no céu.
Aspirei duas longas baforadas no meu Coiba, acompanhando os dois minuetes que colocam término à partitura que celebra o fim da guerra de Sucessão austríaca e também a uma hospedagem invisível e forçada. Adeus Horla, desampara-me a loja maçónica e o pufe e devolve-me a minha liberdade incondicionalmente doméstica.
A partir daí comecei a receber testemunhas de Jeová, o Homem do Círculo de Leitores, cobradores da água, porteira carrancuda, parentes afastados e outras visitas indesejáveis com “Música para os Reais Fogos de Artifício” de George Friedrich Haendel e posso garantir que não me tenho dado nada mal. A minha vida está mais allegro vivace e as ervilhas com ovos escalfados têm um sabor sinfónico.