Eu, como muitas outras alminhas neste mundo pós-capitalíptico estou preocupado com o emprego. O que é uma grande chatice. Não porque goste particularmente de trabalhar, mas porque o salário me dá muito jeito para sustentar os meus vícios, que são diversificados e se foram sofisticando à medida que a minha declaração de rendimentos foi superando as piores expectativas da minha mãe.
Agora já como risottos e bebo Bushmills com regularidade, antes comia arroz cigala com atum e bebia whisky marado que dava ressacas piores que as torturas de Guantanamo.
A minha mãe queria que eu fosse advogado, como todas as mães que percebem que os filhos são incapazes de ser médicos ou engenheiros de telecomunicações de olhos azuis, e eu fui logo ser jornalista, que é uma área de actividade em que um bom preguiçoso pode ir sobrevivendo, desde que não se arme aos cucos e não seja demasiado vaidoso (o que é uma improbabilidade estatística no ofício).
O jornalismo é aliás uma das actividades humanas em que um grande preguiçoso pode trabalhar como um cão, sem se sentir excessivamente culpado com isso.
O Alçada Baptista costumava dizer uma coisinha muito interessante sobre esta matéria: “Discurso a preguiça, e pratico o trabalho, enquanto outros discursam o trabalho e praticam a preguiça”. Na mouche. Em Portugal o que há mais é garganta sobre o trabalho. Mas, se fossemos fazer um grande inquérito aos portugueses sobre o trabalho, as respostas seriam invariavelmente estas:
1- Trabalho que nem um mouro
2- Tenho um salário de merda
3- O meu chefe é um merdas, um tiranete, uma algália
4- Os meus colegas são uns incompetentes, carreiristas, lambe-botas e vão para a cama com o chefe
5- Detesto o meu trabalho, gostava era de jogar no Manchester United ou ser actriz numa telenovela do Nicolau Breyner.
Ou seja, o mundo do trabalho em Portugal, e se calhar no resto do mundo é uma poderosa ficção, um sistema artificial que cria pequenas bestas diárias, que embrutece, que rebaixa o homem à condição de máquina de pequenas ambições. Boris Vian dizia “Não preciso de ganhar a vida, já a tenho”
Mas o problema não é o trabalho em si.
É depender dele para viver, ou pior, para viver bem. O dinheiro infecta a nossa relação com o trabalho.O trabalho nem seria mau de todo se fosse um acto voluntário, espontâneo e que nos desse prazer. Mas não é.
A maior parte de nós, pelo menos aqueles que ainda têm uma réstea de bom senso (perdoem-me a imodéstia) acham o trabalho indigno. Isso mesmo, indigno. É por isso que fico com náuseas quando ouço alguém com gabarolices sobre a quantidade de horas que trabalha (os fanfarrões têm tendência a mentir ou hiperbolizar).
Um escravo a gabar-se da escravatura é trágico-cómico. Um escravo do salário não deixa de ser um escravo. Quem nunca sonhou chegar ao seu emprego, entrar bêbado no gabinete do chefe, fumar-lhe nas ventas e dizer-lhe “frankly my dear, i don`t give a shit” e sair em estilo cinematográfico perante o murmúrio escandalizado e invejoso da malta da repartição. Mas não, faltam tomates e ficamos reféns do medo, das consequências, do desemprego, do espectro da pobreza.
Temos Passates, infantários, quintas da pacheca, férias na Jamaica para pagar, e por elas suportamos a angústia diária, as humilhações, a imbecilidade.
Perdemos os melhores anos das nossas vidas enfiados em trabalhos dissimulados, que desprezamos e pelos quais nos privamos de estar na cama com a mulher (ou as mulheres que amamos), de brincar na praia com os nossos filhos, de tratar com carinho e cuidar dos nossos velhos, de beber copos e tocar viola com os nossos amigos, de ler o livro de poesia do Cesare Pavese (“Trabalhar cansa”), ou de passar uma tarde estendido na cama a fumar sem fazer a ponta de um corno, ou como dizem os operários da cerâmica das Caldas ao domingo: “Hoje não faço um caralho”.
O trabalho, como está organizado, não é a forma do ser humano se completar; é a forma que o ser humano encontrou para se ir destruindo em doses de oito a dez horas diárias. O trabalho, como está organizado é uma valente merda, porque nos rouba todo o tempo, energia e esperança para viver as coisas boas na vida.
Mas não fiquem com a ideia que defendo um modelo social totalmente dedicado ao ócio. Não. Acho que se devia deixar os masoquistas e aqueles que preferem o seu emprego a uma noitada com os amigos continuarem a trabalhar e pagar-lhes principescamente por essa nobre insanidade.
Quanto aos outros, os lúcidos de espírito, deviam poder fazer apenas os trabalhos que gostam, no tempo e horas que o gostassem de fazer. Se alguém extrair prazer do seu trabalho vai ser mais produtivo nas 5 horas que lhe dedica por dia, do que o tipo que finge que trabalha 12 horas por dia nos serviços administrativos da morgue.
A economia e a produtividade nacional ficariam a ganhar se finalmente em Portugal todos pudéssemos fazer aquilo de que gostamos. Portugal é um tremendo erro de casting, tem por exemplo um primeiro-ministro que daria um óptimo mediador imobiliário; caixas de supermercado que dariam grandes barítonos e apresentadoras de programas de televisão que seriam excelentíssimas sopeiras.
Temos os papéis todos trocados. Eu pela minha parte, que não sei fazer grande coisa na vida e que não tenho nenhuma tia rica (tenho umas ricas tias, isso sim), já comecei a olhar para o meu futuro e à procura de um trabalho que me preenchesse.
Vou entrar no ramo das energias renováveis, encontrei este anúncio, espero não ser sobre-habilitado para o cargo:
“Precisa-se: Rapaz que sofra de flatulência, gases, para festa privada.
Dá-se alojamento. Lisboa.”
Mike Fingers
Tradução: Pastor Pelejão