Muito festejado nos media, o último livro de Saramago tem sido muito lido também, que é o que mais pode desejar-se no turbilhão dos festejos literários. Mas depois dos últimos romances, de assegurado interesse temático (votos e eleições, no Ensaio sobre a Lucidez; a crítica dos centros comerciais, em A Caverna), que faz correr os leitores para um livro sobre a morte, esse interdito maior que sobre todos nós pesa? Um livro que, logo no título, na memória do leitor culto, convoca o émulo difícil que é Proust? Decerto o rumor, que a leitura confirma, de que se trata de um romance divertido. Pois que nos pode dar maior satisfação do que rir à custa da morte, a única coisa no mundo que não faz rir ninguém, a não ser em esgar ou exorcismo? Matéria para reflexão diversa contém este livrinho de 200 páginas, que se lê de um fôlego, e de que destacarei alguns aspectos. Antes de mais, a lição de História que contém, não porque nele se assuma o tom didáctico de perorar sobre acontecimentos do passado, mas porque tratar da morte a sorrir, dela fazer motivo de irresistível galhofa ou, pior ainda, pôr à prova a sua capacidade de actuação inexorável, nos faz recuar a tempos que habitualmente menosprezamos, os últimos séculos medievais, ou a outros que só parcialmente honramos, os séculos do antigo regime, e que em conjunto são os únicos na civilização ocidental em que o artista se permite olhar a finitude humana com este tipo de proximidade e bonomia.
A morte na arte ocidental Recordemos o motivo então frequente da “dança da morte” (em que mortos e vivos se dão as mãos numa confraternização sinistra mas que tem de saudável o facto de fazer face aos interditos), frequente na literatura e na arte dos séculos XIV e XV, e cujo exemplo discursivo emblemático é decerto a Balada dos Enforcados de Villon; ora em Saramago, onde a música é também central, embora não seja música de dança, aos “humanos irmãos” desse texto francês substitui-se uma indefinível figura de mulher, e inclui-se sugestivamente um verso da Balada das Damas de Outros Tempos, onde se encara a morte como lugar e tempo, e não como entidade. Recorde-se ainda a presença da caveira e do esqueleto durante o período barroco, na figuração esteticizante da mulher amada, inefavelmente bela mas sofrendo já da deterioração física que a arte dá a ver em simultâneo, apontando para um horror que não tem a ver com a visão sinistra do medo romântico, no qual a morte é rejeitada, mas se traduz em contemplação serena e lúcida de um equilíbrio basicamente clássico entre a pujança do corpo e a sua derrocada, só barroca pela tensão que a simultaneidade provoca e pelo conflito que a antítese produz. “Nesse corpo da Morte encerrei eu a Vida”, escreve o grande poeta barroco Agrippa d’Aubigné, com a nostalgia de aceitação que se substitui à impressão tétrica dos versos de Villon e torna ambígua a aniquilação, ao mesmo tempo morte devastadora e entidade humana que pela destruição perdura.
Neste sentido, o livro de Saramago prossegue outras vias, pois recupera essa tradição mas envolve-a com o postulado iluminista da necessidade social e escatológica (em sentido filosófico e não religioso) da morte, já de algum modo prenunciado na sua expressão cósmica do Renascimento em magníficos versos de Ronsard (“vivo ou morto, teu corpo são as rosas”), que As Intermitências da Morte de algum modo lembra através da poesia da morte em flor, no sucedâneo poético que é Malherbe. E prossegue, de início, analisando de modo frio e jocoso as implicações sociais, económicas e políticas do facto súbito de, a partir de certa altura, as pessoas deixarem de morrer. A “maré alta de alegria colectiva ” que daí resulta cedo conduz a ponderações de temor e crueldade (doentes desenganados cujo sofrimento se prolonga, velhos que resistem penosamente, impossibilidade de suportar os custos do aumento populacional, organização de mafias que exploram os problemas criados pela circunstância, estando superlotados os hospitais e os “lares do feliz ocaso”) e à verificação do cataclismo, “o pior dos pesadelos”, que faz com que parte da população se encontre em estado de “morte parada”.
É aí que o livro de Saramago aponta também para uma meditação muito séria, que nos recorda a fascinante análise de Philippe Ariès aos diferentes modos como a morte tem sido encarada na civilização ocidental, “grosso modo”: 1. a morte como acontecimento doméstico normal, durante a Idade Média; 2. a noção arrepiante da morte inevitável de si próprio, no Renascimento e Antigo Regime; 3. a dor pela morte do outro (o outro a quem se ama mais do que a si mesmo), no período romântico; 4. e a morte contemporânea, manifestada em formas denegadas, privadas da corporização visível e do luto, uma espécie de morte hospitalar “in absentia”, erradicada do quotidiano e favorecendo a neurose. A inspiração histórica (no romance de Saramago comunicada em plano de intertexto e na costumada presença dos adágios populares, isto é, em herança literária erudita e popular) e a visão sociológica (que neste livro oscila entre os prolongamentos absurdos da evolução social descontrolada e uma argumentação lógico-científica eficaz) unem-se em manifestação textual subtil e não documentarista, expressivamente poética, para construir a usual alegoria da ficção saramaguiana, sobretudo desde que o narrador deixou de situar a acção em locais imediatamente identificáveis, insinuando o “em toda a parte e em parte nenhuma” de saboroso teor vicentino e eficaz alcance moral.
Alegoria e indivíduação É muito curioso que, construído sobre uma abstracção, o livro se encaminhe para a sugestão de um concreto particularmente individualizado, embora ao mesmo tempo exemplar. Vejamos. O romance compõe-se de três movimentos: o primeiro que corresponde ao período durante o qual as pessoas deixam de morrer e ao desatino que daí resulta (veja-se o tratamento de situações semelhantes em Jangada de Pedra e Ensaio sobre a Cegueira); o segundo que abrange a actividade da morte, comunicada como uma entidade individualizada, feminina, existente (embora de características sobrenaturais, fantasmagóricas e quase divinas, porém ironicamente comunicadas), que anuncia regularmente aos humanos, em carta pessoal e manuscrita, sobre papel violeta, que irão morrer daí a uma semana (e esta morte anunciada é já o princípio de concretização da alegoria, porque é como se a morte de certo modo se sumetesse também à contingência civilizacional de que dispõe, entrando no jogo da submissão ao tempo); e o terceiro, em jeito de andamento final de uma sinfonia incompleta, que abarca o inesperado desaire da morte ao ver que lhe é devolvida uma das suas cartas anunciadoras de execução, com o que tem de aceitar uma relativa humanização (ela que curiosamente sempre no livro reivindica um estatuto comum, querendo o seu nome sem maiúscula), vestindo-se de mulher para ir conhecer o homem cuja carta de destinação letal, sem que ele próprio o saiba, foi devolvida. De algum modo, este também matou o Diabo, virando uma espécie de Orfeu nos Infernos porque também é músico, e vai acabar por encantar a divindade das sombras.
Uma alegoria social e filosófica centra, pois, este romance, tratada no primeiro terço do livro com aquela minúcia descritiva e lógica argumentativa a que Saramago nos habituou desde a História do Cerco de Lisboa, que desorienta por vezes o leitor e o deixa ansioso à espera da ficção que tarda em chegar; a alegoria transforma-se porém inesperadamente na história de amor mais incrível, inverosímil e comovente, que é, antes de mais, a história de um matador rotineiro em transe de emocionada descoberta da maravilha da criação (a morte ajoelhando-se diante de uma partitura de Bach!), e que é também a história da necessidade (e não fatalidade) que todos temos de morrer, incluindo quem mata. Sobretudo, é a história da transformação do riso escarninho de quem implacavelmente destrói em abraço de humanização aconchegada e sono de serenidade benfazeja. Ou de como a morte se transfigura em amor, e vira costas ao barroco e outras lições do passado, inventando o futuro na ficção a desafiar o presente.
A música e a borboleta Um presente que Saramago inventa concretamente a partir da música, e por isso falei em movimentos neste livro. Porque o sentido nele se move, da sociedade genericamente encarada para a entidade ameaçadora e decisiva que a tutela (a morte), mas desta, inesperadamente, para a cousa humana e mutável, singular e precária (um homem que vive sozinho com o seu cão), e para uma pura consumpção.
Porque no final, a morte queima a carta que dirigira ao violoncelista, a carta devolvida, com um fósforo, e essa chama significa de algum modo o sopro humano que ela para si agora adoptou.
Um sopro que representa a vida anónima e calada, sujeita à morte, sim, mas que dela se liberta, em breve plenitude, quando a sua respiração toca o outro (“toca”, digo bem, ao falar deste livro!). E aqui articula-se de forma particularmente feliz a questão da tangibilidade com a do gesto que se não conclui: a carta condenatória ou a carta que volta para trás (em aceno também risonho e cúmplice ao modo epistolar no romance), a música que se ouve, num concerto, ou a música que se toca, em execução (na sua forma positiva), ou ainda a música que se lê, numa partitura. A importância da música reside nestes vários graus de concreto e de abstracto que a expressão sonora potencializa, e que são aqui expressão magistral da forma como Saramago utiliza a alegoria para chegar ao concreto, e a generalidade social para desembocar na singularidade do indivíduo. E que não vai sem se relacionar com toda a problemática da frase, sobretudo a da escrita da morte, censurada por suas agramaticalidades e alegadas incorrecções linguísticas, na carta que escreveu e veio publicada nos jornais. Como se com a morte estivesse sempre tudo errado quando afinal, sugere Saramago, com ela tudo está certo.
Entre essa respiração e o gesto a que conduz fica uma borboleta. Uma brancura inefável da “caveira ” (variedade do lepidóptero) que se corporiza quando o corpo do homem a toma e a faz finalmente existir, como participante na criação. Morte com amor se paga, ou de como uma alegoria se pode prender a um símbolo. Neste romance que é uma maravilha de ler, e é preciso com atenção escutar também.