É sabido que o rei D. João III enviava gente moça a estudar para o estrangeiro e que volvidos alguns anos os resultados dessas experiências eram integrados na cultura e na mentalidade portuguesa. Uma dessas novidades foram as comédias Os Estrangeiros e Os Vilhalpandos, de Sá de Miranda, trazidas da sua viagem a Itália entre 1521-1526. A propósito do ambiente cultural encontrado no seu regresso, Vítor Aguiar e Silva diz-nos que Miranda, “utilizou habilmente o seu prestígio e a sua valia na corte para defender e avalizar, digamos assim, as suas inovações literárias”, e que usufruindo da amizade dos grandes senhores, conseguiu que estes embarcassem na “aventura” da modernidade literária renascentista.
Por esta altura, coexistiam duas correntes estéticas de escrita dramática: a medida velha, cujo maior cultor na corte foi “Gil Vicente, mestre de retórica… e das representações” e a medida nova, tida por mais recente, que abarca os primeiros tempos da novidade da comédia em prosa introduzida por Sá de Miranda. Uma situação nada pacífica, se tivermos em conta os registos da época. Mas, se a querela começou no campo das ideias e práticas estéticas, antagonizando o Auto em verso à Comédia em prosa, rapidamente passou para o âmbito pessoal, pois os dois dramaturgos/cortesãos, começaram a endereçar-se expressivas e mimosas farpas, alimentando uma contenda que em muito extravasava o foro da opção estética. Parece que Vicente, com a faceta satírica que lhe é reconhecida, se terá atirado a Miranda na Comédia Sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, representada nessa cidade em 1527, quando escrevia sobre “clérigos coimbrões que, com mui largas pousadas, mantinham as regras das vidas casadas”. Pensava-se que Vicente acertara no alvo, referindo-se ao cónego Mendes de Sá (pai de uma prole de cinco filhos, bem colocados na vida, como Sá de Miranda e o irmão deste, que estudante em Salamanca viria a ser no futuro governador do Brasil), mas, à luz de nova documentação, ficamos a saber que esta acusação era duplamente verdadeira, pois se aplicava tanto ao pai como ao filho.
José Vitorino Pina Martins, numa sessão da Academia das Ciências de Lisboa deixou estupefacta a audiência quando revelou, em primeira mão, novos dados biográficos sobre Sá de Miranda: o local e data exacta de nascimento (Coimbra, ano de 1487), e a sua desconhecida condição de sacerdote, assinalando ainda o sentido prático do poeta, exemplificativo de como este soube tirar o máximo partido dos regulamentos complexos que regiam a vida religiosa.
Extrapolando sobre o binómio vida e obra, Thomas Earle em “Traição e amargura nas comédias de Francisco de Sá de Miranda”, considera ser tentador imaginar como certos textos projectam a realidade, mostrando como a vida e obra se iluminam recíprocamente. A série de descobertas feitas pelo Padre António Domingues de Sousa Costa, no Arquivo Secreto do Vaticano, trazendo informações novas para o estudo da personalidade e da obra, vieram provar documentalmente a complexidade da figura, e o seu duplo estatuto, de sacerdote e homem casado.
Para além de um rei controverso, descobre-se agora um súbdito controverso! Um monarca Piedoso oferece bolsas de estudo para estudar arte e ciência no estrangeiro, mas também encerra colégios e encarcera lentes dentro de portas. Um súbdito cortesão, de conduta irrepreensível, mas que afinal usa expedientes legais que lhe permitiram abraçar em simultâneo a condição de sacerdote e de homem casado. Uma situação, que pelos vistos Gil Vicente achou teatral.
E por falar em teatro, Sá de Miranda teve um papel inovador na sua obra dramática, e embora o embate com a rotina caseira tenha atenuado o seu entusiasmo, segundo Crabée Rocha “Em matéria de teatro, porém, verifica-se, com júbilo, que levou corajosamente ao fim o seu propósito renovador, sem qualquer vacilação”. Lembrava ela em 1958, que “As duas comédias bem precisavam que se pusessem à prova de fogo no palco as suas qualidades intrínsecas e teatrais”.
Bom, deixemo-nos de desavenças mirandinas, mormente em tempos difíceis, até porque, como dizia o poeta dramaturgo “O sol é grande!”.
Lisboa, 30 de Novembro de 2011
Silvina Pereira