Numa publicação deste género a qualidade das contribuições seria sempre variável, mas há histórias muito interessantes, e uma notável. Essa pertence a Francisco Sousa Lobo que, deixando de lado o pudor que ainda rodeia muita da BD autobiográfica portuguesa (incluindo neste livro), assume frontalmente um passado depressivo (de quando ficou “biruta”). Não é que fosse preciso, um leitor do seu excelente “The Dying Draughtsman/O desenhador defunto” não ganha nada em confirmar o óbvio: que o livro era um (auto)relato levemente ficcionado, que refletia sobre o peso do pessoal na realização da Arte e na, não necessariamente relacionada, procura de equilíbrio. Mas podemos apreciar aqui uma excelente narrativa que encontra um ambiente gráfico ideal para representar o isolamento, a loucura, e a eventual superação de demónios. E, sobretudo, uma leitura complementar ao livro anterior, discutindo a transição entre realidade e ficção a várias níveis, na cabeça perturbada do autor, e enquanto obra(s).
Não se pense que o pudor ou a vontade de recato (sobretudo quando envolvendo a representação de terceiros) são necessariamente obstáculos à qualidade da banda desenhada autobiográfica. Tudo depende do interesse do material e do talento do autor, como sempre. E há aqui quatro exemplos unidos por um comparável virtuosismo gráfico. David Campos descreve episódios paralelos à sua experiência na Guiné-Bissau relatados em “Kassumai”, desta feita em Cap Skirring, estância balnear no vizinho Senegal. Num certo sentido liberta da descrição de tarefas na ONG, esta história surge marcada por elementos mais críticos, misteriosos e perturbadores, ausentes na obra anterior, e que lhe concedem uma profundidade distinta. Já a unir as histórias de André Coelho e José Smith Vargas, está o usar retratos de indivíduos para trabalhar uma noção de todo (neste caso de índole nacionalista). Por último, Tiago Baptista contribui uma excelente e atual reflexão cruzada, onde do Holocausto se passa para a Faixa de Gaza (e vice-versa). O insuspeito ponto de partida é uma roulotte com o nome da cidade palestiniana de Jenin, que vende felafel em Berlim, cidade onde o autor se encontrava no âmbito de uma residência artística.
Mas “Zona de desconforto” é igualmente interessante por conter abordagens que denotam o quanto diferentes influências reconhecíveis (que antes teriam sido classificadas como “alternativas”) têm permeado os criadores portugueses, de forma assumida ou não. Por exemplo, no formato de diário gráfico brasileiro de Daniel Lopes, ou nas BDs autobiográficas mais diretas (mas nem por isso menos interessantes) de Christine Casnellie (Holanda) e Júlia Tovar (Argentina), com o pormenor curioso de a última narradora se retratar a si mesma e ao marido como andando nus em Buenos Aires, algo que parece simbolizar uma fragilidade de estrangeiros, que passa despercebida a todos os outros. De facto todas as histórias de “Zona de desconforto” trabalham a percepção que qualquer grau de segurança está a um passo de ser exposto quando se dá um passo no desconhecido, mesmo um desconhecido próximo. E para abordar o mundo é necessário cada vez mais dar esse passo.
Zona de desconforto. Argumentos e desenhos de vários autores. Chili Com Carne, 150 pp., 9 Euros.