Por exemplo, os superheróis foram sempre propriedade de editoras, o que explica a variedade que marca o género, sendo lícito falar-se no Batman de Bob Kane/Bill Finger, no de Denny O’Neil/Neal Adams, ou no de Frank Miller (como no de Christopher Nolan ou Tim Burton). O mesmo princípio é mais raro na BD franco-belga, citando-se a série Spirou, ainda assim sempre num mesmo registo narrativo.
Um fenómeno posterior é distinto, no sentido em se pretende continuar aventuras de personagens icónicas usando um “template” mimético. Não há pois uma espécie de evolução na continuidade, com as premissas a acompanhar os tempos, como sucede noutros casos (Doctor Who, James Bond-007). Pelo contrário, o objetivo é, por estranho que pareça, fazer as BDs que os autores originais poderiam ter feito, se tivessem tido oportunidade. É algo comum em muitas séries emblemáticas italianas, mas Blake & Mortimer, criada pelo belga Edgar Pierre Jacobs (1904-1987), é um caso particularmente interessante.
Blake & Mortimer foi uma série com caraterísticas únicas, da elegância do traço, ao detalhe minucioso na definição operática de ambientes claustrofóbicos; misturando aventura, ficção histórica e ficção científica. E com Jacobs a insistir numa aturada pesquisa prévia, em manter a credibilidade possível. Paradoxalmente, a abundância de texto redundante faz com que Blake & Mortimer nem sequer seja um bom exemplo daquilo que deve ser a relação palavras/desenho em BD. Para a continuação contemporânea da série têm sido fundamentais três argumentistas, já que o ponto de partida quase elimina uma discussão sobre o desenho, basta ver se imita Jacobs melhor ou pior. Nos primeiros álbuns os argumentos alternados de Yves Sente e Jean Van Hamme oscilaram entre o eficaz e o ridículo, sobretudo porque procuravam recapitular ambientes, estilos e ritmos originais (até erros e exageros originais), com um mínimo de inovações (mais personagens secundárias femininas, por exemplo), e o resultado final parecia forçado e anacrónico.
Não que também não o seja no mais recente A onda Septimus (ASA), mas o provocador Jean Dufaux fez aqui escolhas muito inteligentes. Desde logo ao decidir continuar A marca amarela (1953), não apenas por esta ser a mais icónica das histórias de Jacobs, mas porque o tema do controlo e manipulação do comportamento é um foco atual na área de neurociências, com implicações óbvias.
Um outro pormenor é o fascínio que o herói-cientista Philip Mortimer sente pelas descobertas do seu antigo adversário Jonathan Septimus. A tentação de Mortimer em explorar clandestinamente o potencial benefício de um lado mais negro da ciência é natural, mas não seria provável com Jacobs. Claro que há elementos mais caricatos no argumento (sobretudo na parte de ficção-científica), mas mesmo a multiplicação (imperfeita) do vilão Septimus quase pode ser lida como um comentário humorístico à vida de Blake & Mortimer pós-Jacobs.
No fundo talvez se esteja a perder o respeito ao original, e isso não será mau de todo. Até porque permanece o problema essencial: pese embora o inegável sucesso, é duvidoso que estes excelentes exercícios de marketing tenham trazido novos leitores a Blake & Mortimer, e não apenas neste caso pontual em que a história implica o conhecimento de uma outra, publicada décadas atrás. E os leitores que há não durarão sempre.
Das séries franco-belgas mais icónicas Lucky Luke também já deu os primeiros passos nesta direção, seguindo-se Astérix entre os Pictos (ASA), um álbum competente e “seguro”, que mimetiza a série original sem ofender nem transcender. Num futuro próximo teremos Tintin? Não sendo por aqui que passam as abordagens mais interessantes em BD estes projetos servem, pelo menos, enquanto fenómenos mediáticos e, portanto, como pretextos. E esses são todos bons.
As aventuras de Blake & Mortimer: A onda Septimus. Argumento de Jean Dufaux, desenhos de Antoine Aubin e Étienne Schréder. ASA, 70 pp., 16 Euros.