Rapidamente se percebe porque motivo The Impostor’s Daughter de Laurie Sandell conseguiu um lugar na lista. Chama a atenção por ser uma obra “diferente” feita por uma autora que não o é menos. Se o objetivo é mostrar a variedade de soluções e públicos potenciais para a banda desenhada obras como esta são claramente prioritárias. Laurie Sandell é uma editora “freelance” norte-americana que trabalha sobretudo em histórias/entrevistas de celebridades, com as quais parece ter a facilidade em estabelecer empatia, facto que é repetido “ad nauseum” ao longo do livro. O tema que serve de ponto de contato com entrevistadas como a atriz Ashley Judd é a relação difícil de Laurie Sandell com o pai, que terá envenenado toda a sua existência.
Note-se que não pretendo de modo algum menorizar as mentiras do progenitor da autora, que são muitas e graves. Fascinar as filhas com relatos fantásticos de uma vida de aventuras que nunca aconteceu pode ser ilusão ou doença mental, contrair dívidas em nome de outrém sem o seu consentimento é crime. A questão é que Laurie Sandell transforma as efabulações do pai na causa fundamental de tudo o que de mau lhe aconteceu na vida. “Mau” no sentido norte-americano de classe média intelectual, entenda-se… Ou seja: problemas em encontrar um caminho pessoal e profissional equilibrado. Nada disto seria impeditivo de uma obra interessante, não fosse a estridência que acaba por conceder à narrativa. Esta BD parece pois um ajuste de contas autobiográfico escrito por uma personagem menor de Sexo e a Cidade como se se tratasse de um trabalho de casa encomendado pelo terapeuta de serviço à saída da Clínica de Reabilitação.
Ao contrário do que sucede noutras obras semelhantes que também fazem parte da lista das 1001 BDs, mais do que a tentativa de compreensão de uma figura paterna (como em Fun Home de Allison Bechdel) o foco aqui é a denúncia, feita de modo desastrado, quase como uma cruzada pessoal. Algo que explica o facto de a autora repetir constantemente as mesmas acusações, não vá o leitor esquecer-se. É aqui que The Impostor’s Daughter se afasta, por exemplo, de Stitches de David Small, livro referido noutra ocasião. A dependência de soníferos e álcool que atormenta Laurie Sandell? A culpa é da mãe que lhe deu o primeiro comprimido de Ambien/Zolpidem (e a simbologia à volta destas drogas “para dormir” socialmente “aceites” é óbvia). O pai é o culpado de serviço para tudo o resto. Não esquecendo as irmãs, cuja decisão de manter a paz familiar usando o distanciamento e ignorando as transgressões do pai a autora não perdoa. Mesmo quando confessa erros Laurie Sandell transfere a culpa para a sua família gritando ao leitor: “vêem o que eles me obrigaram a fazer?”. É pena, porque se sente que havia aqui muito a explorar, nomeadamente os motivos pelos quais o pai de Sandell (judeu imigrante originário da Argentina) resolveu fugir de casa e criar uma nova identidade. Mas se este tema não é ignorado, também não é aprofundado, porquanto não faz parte do fulcro do livro.
Num certo sentido The Impostor’s Daughter evoca a fascinante série de TV da HBO Enlightened de Mike White e Laura Dern (uma das entrevistadas de Sandell, curiosamente). O ponto de partida é semelhante, no sentido em que a protagonista da série tenta alcançar a paz interior no mundo real após o ter conseguido numa Clínica/Retiro equivalente ao frequentado por Laurie Sandell. O problema é que as restantes “personagens” da sua vida recusam o papel que lhes é atribuído, e teimam em ignorar as lições que a protagonista (Laura Dern) lhes tenta transmitir. Enlightened tem a particularidade de, usando situações triviais da vida em sociedade, conseguir criar um ambiente de extremo desconforto para todas as personagens envolvidas. A diferença é que, se se sente claramente que há toques pessoais neste projecto (o papel de mãe da protagonista foi dado a Diane Ladd, mãe de Laura Dern), o foco de Enlightened não é a catarse em si mesma, mas a catarse via análise. Ao contrário de The Impostor’s Daughter, ninguém tem a verdade absoluta ou se salva culpando os outros. Pode achar que se salva, a ilusão é sempre de borla. Mais uma vez uma obra de ficção consegue ser muito mais interessante com a mesma temática do que um relato autobiográfico. Nada que nos espante: a Verdade é muitas vezes sobrevalorizada enquanto elemento narrativo.
Se do ponto de vista da história pouco mais há a dizer, o desenho também merece uma palavra. Mau. O traço “naïf” até se adequa bem ao retrato inicial da protagonista ingénua fascinada pela figura do pai, mas não tem soluções para a parte mais negra da narrativa. Por exemplo, quando quando tenta mostrar a derrota e envelhecimento do pai retrata-o quase da mesma maneira como no início. Poder-se-ia argumentar que o efeito (propositado) seria mostrar que a protagonista não se consegue curar das suas obsessões e está destinada a reviver constantemente as mesmas crises. Mas a auto-satisfação da autora no final não permite essa leitura. É aqui que este livro se distancia mais ainda de Fun Home e sobretudo de Stitches, com a qual tem mais afinidades, no sentido em que, se o livro de Bechdel é (também) um retrato de auto-descoberta de uma autora de BD lésbica que descobre no pai um homessexual reprimido, Small compartilha com Sandell a característica dupla de não dominar a linguagem da BD (apesar de saber desenhar), e de usar o livro enquanto ajuste de contas.
Há obras profundamente irritantes pelo modo como são realizadas ou pelas posições que defendem (melhor: pela maneira narcisista como as defendem), mas cujo inegável talento transcende, nem que seja um pouco, essas “limitações”. A ingénua ode triunfal à prostituição Paying for it de Chester Brown é talvez o melhor exemplo recente, já aqui discutido. Ou, noutro contexto mas com uma temática familiar semelhante, os filmes de Noah Bambauch. O pior que se pode dizer da obra de Laurie Sandell é que faz o livro de Chester Brown parecer equilibrado, e o de David Small genial.
É de todo legítimo tentar vários mecanismos para garantir uma vida serena, resolver conflitos, conseguir a felicidade possível. Ser insuportavelmente moralista, auto-iludido e estridente fazendo de conta que se está a ser corajoso também não é crime, como não o é a falta de talento. Não duvido que fazer The Impostor’s Daughter tenha sido terapêutico para a autora, e seja interessante para quem com ela empatize. Escrever este texto depois de o ter lido também o foi para mim.
Sinto-me melhor.
The Impostor’s Daughter, Laurie Sandell, Back Bay Books (Little, Brown/Hachette), 2009. (10/20).
A list such as Paul Gravett’s “1001 Comics you should read before you die” is very useful for two reasons: it provides endless discussion fodder, and it suggests new books to read, as it is not likely that even the greatest comics/bande dessinée/fumetti/mangá/banda desenhada aficionados have read everything mentioned. So part of the 1001 was therefore made into my own ever-evolving reading list. The first was Laurie Sandell’s The Impostor’s Daughter.
It’s easy to understand why this particular book made it into the 1001. It is a “different” type of memoir done by a “different” sort of author. And we all want comics to be “different” and reach other types of audiences, thus proving how mature and eclectic they can be, right? Right. The point is that the differences in this case come out all wrong.
Laurie Sandell is a freelance writer/editor with expertise in celebrity interviews, often bonding with her subjects over stories on how her life was sidetracked by her father’s lies. The lies are by no means trivial: besides making up a glamorous (false) identity that enthralled his infant child, there was also massive fraud, envolving, for example, applying for (and maxing out) credit cards in the names of his wife and kids.
But then the predictable leap comes along: all the (so-called) catastrophes in Laurie Sandell’s professional and personal life stem, at least in her mind, from this lifelong paternal betrayal, either directly or because her family stubbornly refuses to embark on her quest to denounce her father, chosing instead the conforts of denial. This is the purpose of the book, which comes across as a bitter tell-all memoir by a (minor) member of the Sex and the City cast, planned almost as if it were an assignment after a stint in rehab, requested by the therapist on call.
It goes without saying that all would be forgiven, were the book more interesting and less predictable to those who do not connect with the authors experiences or point of view; in short, those who will not reduce Sandell to the label of being “brave”. The tone of a “recovered” protagonist coming to terms with her demons is very similar to the fascinating HBO series Enlightened created by Mike White and Laura Dern (ironically one of Sandell’s interviews). Except that in the TV show the social awkwardness and personality flaws seem genuine (ironic, given that it is a work of fiction…) and infect all characters. In that regard The Impostor’s Daughter proves (once again) that Truth can be overrated as a narrative. Given that the author feels the need to get her points across they are constantly repeated, in case the reader missed them. The book sounds merely self-serving, and even when the author is criticizing her own behavior she never loses the upper hand, her faults are never her fault. An example? Her addiction to Ambien was actually fostered by her mother, and the analogy for sleeping pill (over)use in the context of the book is too clumsy to discuss.
It’s actually a pity: there was material with potential, including the hidden story of why her father (an Argentinian Jew runaway) made up a new identity, but the topic is never seriously tackled, as it is not really the focus of the book.
The artwork in a word? Bad. In more words? It doesn’t work. The naif style is actually very good for the initial part of the narrative, establishing the awe of the daughter towards her larger than life father, but has no solutions for the rest of the book as the father’s story unravels and darkness sets in, the art adding yet another layer of repetition to the story. Besides being more subtle in his approach to similar source material, David Small (author of Stitches, a comparable book on the 1001 list) can use his draughtsmanship for narrative purposes, and this is clearly not the case here.
In short: there is no denying that The Impostor’s Daughter was probably very important for the author’s spiritual growth and peace of mind. Here Life trumps Art, and that is not necessarily a bad thing. The Impostor’s Daughter is a useful book on many levels, just not a very good one. If that’s what you think a list of essential comics should include, be my guest.