A banda desenhada é uma linguagem que usa muitos recursos, e deve formar todos coesos e indivisíveis. Mas há sempre a tentação de dissecar, valorizar uns elementos em relação a outros. E surgem diferenças notórias entre escolas. Embora tenha havido uma clara evolução recente, a BD franco-belga preveligia álbuns cartonados de grande formato, mais caros e impressos em bom papel. Por outro lado, na BD norte-americana o sinal é oposto, a todos os níveis. Um corolário indirecto, mas inevitável, é que na avaliação superficial de um livro no primeiro caso se presta importância imediata ao traço e estilo de desenho, enquanto no segundo se tenta captar o ritmo, o género, as personagens, a história. Desenho versus Argumento.
Claro que há exceções. Muitos dos novos grandes autores francófonos como Joann Sfar ou Lewis Trondheim ou Manu Larcenet (já não tanto Christophe Blain) são mais americanos, no sentido em que o seu estilo de desenho é de caligrafia gráfica, e o modo como dizem o que dizem parece ser sempre secundário ao que têm para dizer. Como exemplo de outros grandes autores que se encontram noutro extremo poder-se-iam citar De Crécy ou Marc-Antoine Mathieu. Ou Chris Ware ou Jim Wooding, para também refeir norte-americanos que são, deste ponto de vista, francófonos. Não que não tenham nada para dizer, apenas que a construção gráfica é parte integrante, e não pode ser vista separadamente. Por outras palavras, uma obra de Sfar pode ser adaptada por outro desenhador, com mais ou menos perdas, mas mantendo a sua essência. Por De Crécy a interpretar Ware ou vice-versa não faz à partida qualquer sentido.
A coleção policial Rivages/Casterman/Noir é particularmente reveladora deste ponto de vista, porque busca validação em dois pontos: bons estilos gráficos e adaptações de autores e obras conhecidos. Anglófonos, na sua esmagadora maioria. Não optou por argumentos originais servidos por desenhos funcionais qb, o mantra da Vertigo Crime, mas a valorização é também evidente: tal como com Ian Rankin os nomes dos autores das obras adaptadas surgem sempre em letras maiores. Pode-se argumentar que a parceria com a coleção de policiais da editora Rivages impõe esta mecânica, mas o facto da editora de BD Casterman ter ido procurar a ligação é que é revelador.
A coleção está muito bem desenhada e cada livro tem um design cuidado com bom papel (e preço elevado) que foge do papel reciclado, preço acessível e pulsões básicas das capas da Vertigo Crime. No entanto, os resultados mostram bem as vantagens e desvantagens da estratégia no sentido em que muitas vezes os livros da Rivages/Casterman/Noir são resgatados através do desenho de argumentos adaptados menos convincentes que abusam de uma narração em “off” carregada de premonições, arrependimentos e filosofias de sofrimento diversas. Mas como essa é a figura de estilo mais maltratada no policial negro, é justo presumir que eventuais problemas até podem derivar do material de base. Seja como for, tentar resumir obras complexas e longas (em termos de situações, personagens, épocas, locais) num número limitado de páginas origina este tipo de questões, sobretudo quando não se quer desvirtuar o original. Se este também não for muito interessante, mesmo dentro do género, o problema aumenta.
Um exemplo evidente de um autor que tem plena noção dos problemas mencionados acima, e que consegue compensar de modo a minimizá-los, surge em Coronado. O notável estilo gráfico de Jacques de Loustal vive da solidão e abertura do cenário, com muitos espaços vazios preenchidos por cores claras. A narrativa solta-se do silêncio, dos ângulos que compõem as personagens e da distância, é ambiente mais do que tudo. Tremendamente eficaz em criar identificação do leitor com motivos complexos que se tiram de pequenos gestos, a própria cor serve muitas vezes de engodo, na sua aparente luminosidade. O outro lado da moeda é que não há muito lugar para texto ou para caracterizações que não saiam do próprio desenho, sobretudo nos seus trabalhos a solo. Traduzir uma história complexa seria algo complicado neste estilo sem recorrer a uma infinidade de páginas, mas Loustal “resolve” bem o problema adaptando em Coronado uma história curta de Dennis Lehane, e não um romance, ao contrário do que acontece nos outros livros. Essa é a vantagem, a desvantagem é que a simplicidade da história (à volta de uma tensão familiar comum em Lehane) e a tipificação das (poucas) personagens não deixa evoluir muito.
Já que se fala de Lehane, um dos melhores livros da colecção consiste na adaptação do seu Shutter Island pelo excelente autor Christian De Metter, que se pode discutir em paralelo com Sur les Quais, por Georges van Linthout (desenho) & Rodolphe (argumento), adaptando o argumento para cinema On the Waterfront ( Há lodo no cais) de Budd Schulberg. Se Rodolphe e van Linthout se mantêm muito próximos do filme de Elia Kazan, a planificação de De Metter parece em muitos pontos quase poder servir de (um muito elaborado e bem desenhado) “storyboard” para o filme de Martin Scorcese. Mas atenção: as razões para isso são totalmente diferentes. Entende-se a presença de Sur les Quais na coleção como um projecto de prestígio, validado à partida pelo próprio filme e pelo seu peso (sobretudo dada a actividade de Kazan enquanto colaborador da caça às bruxas anti-comunista do senador McCarthy). Desse ponto de vista, sendo muito competente e com um excelente ritmo, o seu interesse global enquanto obra em BD é limitado, já que a “tradução” em imagens no cinema a torna algo redundante, e o ritmo é o de Kazan. Assinale-se no entanto o bom trabalho de aguada a imitar a neblina (literal e simbólica) nos bairros e no cais; de resto van Linthoult é um aposta segura e clara, quase um (demasiado bom) desenhador para a Vertigo Crime. Já De Metter (vale a pena ver a sua estréia em Emma) faz um trabalho notável de adaptação do ambiente soturno do livro de Dennis Lehane, cosneguindo que o seu estilo de desenho muito “pesado” e com pinceladas grossas, não perca as diferentes personagens, mas as afunde nas suas angústias, sejam pessoais, sejam institucionais. O uso da cor para os sonhos do protagonista está também muito bem conseguido, dando um sinal de ligeireza que nunca se vem a confirmar. Ignoro de Scorcese ou alguém da sua equipa de produção conhecia este trabalho, mas o Shutter Island de De Metter é anterior ao filme, algo que é visível, apesar das semelhanças nalgumas escolhas, nas diferenças em instantes cruciais. Talvez as semelhanças residam no facto de Lehane ser um escritor muito visual, mas pouco importa. Ao contrário de Sur les Quais, vale a pena ler e apreciar também este Shutter Island.Muitíssimo interessante revela-se também Trouille de Joe G. Pinelli (desenho) & J.-H. Oppel (argumento), adaptando um autor menos conhecido, Marc Behm. Não, mais uma vez, pelo argumento, mas pelo trabalho gráfico de Pinelli. Ao prescindir de vinhetas clássicas e fazendo as personagens dissolver-se e flutuar em suspensão de uma página para a outra o desenhador consegue transmitir a sensação de vazio permanente dada pela fuga incessante do protagonista, que serve com fulcro de uma história com apenas vestígios de policial. Joe Eggan não foge de crimes ou da lei. Esses elementos surgem indiretamente, mas a fuga é ostensivamente de uma Morte corporizada em Mulher Fatal, e de si mesmo, na realidade. Há a tendência de pensar que este relato simples por vezes tenta ser mais simbólico e grandiloquente do que merece, mas de facto o desenho é brilhante em termos de composição.
O “OVNI” desta lista cabe em definitivo a L’Ultime Défi de Sherlock Holmes, de Jules Stromboni (desenho) e Olivier Cotte (argumento), adaptando Michael Dibdin. Por um lado é apenas o segundo a usar um autor europeu, e na verdade o primeiro romance do irlandês Dibdin é mais um “gimmick” do que um romance. The Last Sherlock Holmes Story põe Sherlock Holmes a investigar os crimes de Jack o Estripador, com a meta-narrativa de a história estar a ser contada anos depois pelo Doutor Watson ao autor “verdadeiro” Conan Doyle, citando pelo meio várias aventuras da personagem. O que salva esta historia derivativa e pouco interessante é (lá está…) o trabalho gráfico de Stromboni à base de tramas e cores distorcidas que, para além de usar a figura do actor Jeremy Brett (que interpretou Sherlock na televisão) cria um estilo de desenho “antigo” que homenageia a BD de uma época na qual esta história se encaixaria perfeitamente, como nas histórias de terror da EC Comics. Contrastando com a contemporaneidade do resto da coleção o tom gráfico vale aqui a aposta.
A banda desenhada é uma linguagem que usa muitos recursos, e deve formar todos coesos e indivisíveis. Mas toda a gente que se interessa por BD tem tendências preferenciais, por muito que o neguem ou disfarcem em pseudo-neutralidades objetivas. Pessoalmente mais depressa desculpo um desenho incompetente num bom argumento, do que o inverso. É certo que há excelentes recursos gráficos que “dizem” muito mais do que os textos apensos, mas essa é uma discussão para outra altura. Neste caso particular, e embora as respetivas filosofias nunca o permitissem, seria interessante ver os mesmos livros da Rivages/Casterman/Noir adaptados na Vertigo Crime. Ou os desenhadores da primeira ilustrando os argumentos da segunda. Com isso teríamos uma experiência verdadeiramente controlada.
La Nuit de Fureur, por Miles Hyman (desenho) & Matz (argumento), adaptando Savage Night (1953) de Jim Thompson. Rivages/Casterman/Noir, 2008 (15/20).
Shutter Island, por Christian De Metter adaptando Dennis Lehane (2003). Rivages/Casterman/Noir, 2008 (17/20).
Sur les Quais, por Georges van Linthout (desenho) & Rodolphe (argumento), adaptando On the Waterfront (1954) de Budd Schulberg. Rivages/Casterman/Noir, 2008 (16/20).
Trouille por Joe G. Pinelli (desenho) & J.-H. Oppel (argumento), adaptando Afraid to Death (1991) de Marc Behm. Rivages/Casterman/Noir, 2008 (16/20).
La Guitarre de Bo Diddley, por Chauzy (desenho) & Marc Villard (argumento), adaptando o seu romance homónimo (2003). Rivages/Casterman/Noir, 2009 (14/20).
Coronado, por Jacques de Loustal adaptando uma história curta de Dennis Lehane (2006). Rivages/Casterman/Noir, 2009 (15/20).
Le Kid de L’Oklahoma, por Olivier Berlion adaptando The Hot Kid (2005) de Elmore Leonard. Rivages/Casterman/Noir, 2010 (14/20).
Prisonniers du Ciel, por Marcelino Truong (desenho) e Claire Le Luhern (argumento), adaptando Heaven’s Prisoners (1988) de James Lee Burke. Rivages/Casterman/Noir, 2010 (13/20).
L’Ultime Défi de Sherlock Holmes, por Jules Stromboni (desenho) e Olivier Cotte (argumento), adaptando The Last Sherlock Holmes Story (1978) de Michael Dibdin. Rivages/Casterman/Noir, 2010 (15/20).