Publicadas no Século Cómico estas pranchas humorísticas de Stuart representam não só um marco a nível nacional, como um das raras ocasiões (Bordallo Pinheiro e Carlos Botelho serão outras) em que a a BD portuguesa esteve na linha da frente da inovação da linguagem, neste caso até pelo uso de balões. Embora influenciado pelos “comics” de jornal norte-americanos, a fluidez do desenho, a ocupação do espaço ou a ligação entre vinhetas em Quim e Manecas são superiores a muitos contemporâneos europeus mais celebrados, e a modernidade do traço leva a constantes descobertas gráficas. Isto presumindo que um leitor está recetivo e se consegue abstrair do óbvio: o facto de Quim e Manecas ter sido feito em permanente improviso pode ter libertado Stuart, mas resultou numa lógica interna flutuante, à mercê de inspirações momentâneas. Por outras palavras: não faz grande sentido em termos de continuidade. E são as primeiras histórias, curtas e com balões (depois abandonados) que sobrevivem melhor. Quando a série embarca numa narrativa complexa com texto em quadras rimadas que tentam “explicar” demais (e que não seriam de Stuart) claramente perde. Perde menos quanto menos a sério leva a “história” e mais a usa como pretexto para peripécias e delírios visuais (daí a diferença entre as narrativas “Olho Vivo” e “Pé Fatal”). Conta sempre com o carisma de Manecas, o talento gráfico repentista de Stuart, a inventividade sobretudo em termos de humor, e ainda com a capacidade para sentir o pulso do tempo nas mais diversas áreas, resultando em inúmeros comentários, citações e referências, que obviamente se destinavam ao público adulto. Mais evidentes serão as de política e cultura nacionais ou referentes à Primeira Grande Guerra, mas não só. Por exemplo, uma das não referidas no glossário é a Cesare Lombroso, antropólogo criminologista italiano que defendia a identificação “preventiva” de criminosos mediante características físicas (uma forma primitiva de “profilling”).
Por outras palavras: feito numa altura de total experimentalismo em termos de linguagens gráficas Quim e Manecas é um híbrido na fronteira entre a BD infanto-juvenil de continuidade e o “cartoon” político do momento, e não pode ser avaliado numa única dessas perspectiva, nem lido de seguida. As suas limitações não precisam de ser desculpadas com olhares nostálgicos, uma tentação a que o texto introdutório cede ao início. Um paralelismo possível seria este: já experimentaram ler com atenção argumentos/librettos/letras de óperas clássicas? Como é que algumas delas (sem lógica, ofensivas) podem ser marcos do que quer que seja? Pois é, há a música…
Pena é que não se possa ficar por aqui, e haja alguns reparos a fazer. Certamente terão existido contingências de tempo, meios, dinheiro, e sabemos todos como “isto funciona”. Mas, tal como sucede noutras formas de avaliação, em última análise as obras terão de falar por si próprias. Agora como daqui a vinte anos, já que esta edição vai continuar a ser relevante. Um primeiro reparo é estratégico, e ultrapassa de facto o livro, no sentido que merecia ter versões (mesmo que mais modestas) em francês e inglês, de modo a divulgar internacionalmente o pioneirismo de Stuart. Um outro ponto relaciona-se com a qualidade das reproduções, que devia ser muito superior. Ao ler o livro vi-me várias vezes a evocar o nome de Manuel Caldas, cujo trabalho de restauro poderia ter sido precioso. Por último, a contextualização de cada história seria mais eficaz enquanto notas a cada prancha, não tanto com um texto corrido e um glossário no início. Mas tudo isto é forma, o conteúdo de Quim e Manecas está continuamente a abrir portas inesperadas, trunfa quaisquer outras considerações. E este é um livro imperdível a todos os níveis.
Quim e Manecas: 1915-1918 de Stuart Carvalhais; organização, introdução, glossário e notas de João Paulo de Paiva Boléo. Tinta da China. 240 pp., 44 Euros.