A palavra Arte não diz respeito a nada que tenha algo de constante ou uma essência, o que permite que chamemos a coisas completamente diferentes o termo técnico obra-de-arte, mero reconhecimento de algo que pela sua familiaridade pode pertencer ao “corpus” da arte, ou que legitimamos como sendo um dos momentos reconhecidamente importantes desse corpus: são as ditas cujas obras primas, que acabam por ser exaltadas e às quais os museus e publicações oferecem um estatuto de culto.
Uma coisa é inevitável – esse corpus está em expansão desenfreada, e continuará, da melhor ou pior forma até que os homens desapareçam. O que na escala do universo é irrelevante. A palavra arte é uma convenção que designa a abrangência de objectos que começaram por ter funções banais, como embelezar corpos (uma extensão da maquilhagem), objectos de uso mágico ou religioso, onde projectamos certas crenças, representações de coisas, etc. Outras vezes a produção de coisas despede-se da sua finalidade porque está possuída por uma lógica interna, ou por algo caprichoso, que sobra a funções ou intenções. É aqui que vai a comicheira poética da arte, que no fundo é algo tão natural como o sexo que não se destina à procriação. Quando penso nesta palavra ( a “arte”) não consigo sequer defeni-la como defenimos uma mesa, uma laranja, uma pedra preciosa, uma profissão, ou mesmo a maior partre dos “conceitos abstractos”, e etc.
Há grandes patetices escritas sobre o que é a arte, quando se tenta ver qualquer coisa misteriosa que não esse legado em permanente reciclagem. É claro que a arte (que não posso separar da poética, da música, e coisas do género) sofre das vicissitudes, virtuosas ou defeituosas, de algo que é um puro jogo e que gosta de explorar as ambiguidades, os excessos, as simplificações, e sobretudo as coisas que ficam de fora do comezinho, da prudência e do bom senso. Tenho também a convicção de aque os momentos altos do corpus artistico exploram temas muito básicos que mexem connosco, como o nascimento, o sexo, a morte e por aí adiante. Agora essência… mmm… por isso gosto tanto de me divertir a defenir a palavra arte, como variação de algo esquisito, desejável, mistificável, caprichoso – exercício poético e pretencioso. E gosto desse jogo porque lá mora a hybris, a insensatez – neste caso a insensatez de cordel – o tema preferido das tragédias e das “obras de arte” (será?).
Também não acredito no “paleio” da morte da arte, o que implicaria destruir toda a arte existente e a relação produtiva que se tem com essas coisas, nem creio na perdurabilidade dum verdadeiro ressentimento ou òdio à arte nersta suposta posteridade meta-artística (da tanga!). Pode-se sentir o peso da tradição, ou pode-se, como os dadaístas, desprezar a seriedade e o que constrange na (tal indefenível) arte, numa altura em que se quebravam regras. Hoje, como não há muitas regras, o artista tem que (se) reinventar a partir do que nesse corpus lhe apetece e na sua ingrata tarefa acrescentar qualquer coisa de importante ou interessante ou profundamente afectivo ao dito cujo corpus.
Do mesmo modo o artista não é, nunca foi, nem nunca será um demiurgo (seria um bluff pedante!), como também nunca existiu nenhum demiurgo, ou, pelo menos, não temos indícios nenhuns nesse sentido, por mais que farejemos as pistas. Pode o soi-disant (ou extremamente reconhecido) artista sentir que simbólicamente encena uma criação do mundo, lhe dá uma história, ou uma explicação, num gesto poético. O que é bonito. E nós continuamos a desfrutar de uma “certa” frescura, para além da hipotética curiosidade, pelas cosmogonias e cosmologias, porque nos devolvem a imagem da passagem de algo vazio ou confuso para algo ordenado e simplificado, embora problemático.
É claro que a criação de coisas a que chamamos arte é algo maravilhoso, e por vezes surpreendente, fazendo-as surgir fora do curso regular da produtividade, ou chamando a atenção do olhar para certas coisas de uma forma cativante. Vista de fora a “arte” pode parecer uma doença, como a paixão, porque perturba a arrumação do que aí vai (é uma ordenada desordenação da ordem vulgar com que o “mundo” produz). É claro que se tratam de coisas a que se acrescentam efeitos, quer afectivos, quer fantasmáticos, e que em parte incarnam na influência, que é essa vontade de continuar o corpus, de lhe acrescentar algo, e de responder à (suposta) altura das figuras titânicas que fizeram obras de arte (“os mestres”) que achamos muito boas. O artista terá sempre a sensação, por mais demiurgo que se julgue, de não estar à altura de dar respostas altíssimas, tal como o corpus o exíge. É a partir da consciência de um eventual fracasso que procura chegar a um máximo possível, ou a uma dimensão superlativa a seu ver impossível. É na eminência de uma derrota quase certa que parte para cada uma das suas obras, como quem finta repetidamente a morte. E esse anuncio fatal só pode ser compensado, ao tentar emular o destino trágico de Aquiles, pelo entusiasmo – terrível antídoto, mas eficaz.
Por isso é importante desembaraçarmo-nos dos fantasmas da essência da arte, da sua manhosa morte e da treta do artista demiurgo, ou da supressão disparatada da autoria (fica para outro dia).