A reserva revela-se até pelo silêncio. O antigo atelier de arquitetura Aires Mateus, junto às Amoreiras, em Lisboa, recebeu, por alguns dias, trabalhos de Rui Sanches, como se tratasse de convite feito a amigo, para entrar em nossa casa.
Em espaço alvo e puro, num branco protetor, permanece uma escultura suave e densa, para a possibilidade de interpretação de algumas séries de desenho, obras inéditas do artista. Desenha-se assim o mundo, através da dor que é física e honesta, pela memória partilhada que é de morte e de sangue, mas também pela bênção e pela proteção. O apelo que se faz à beleza, em busca de respostas para a mortalidade.
Da visita inesperada, surgiu uma conversa, que se regista em ensinamento.
A exposição chama-se Espaços e Corpos. Porquê?
Reuni nesta exposição, desenhos e uma escultura que têm que ver com esse tema, que no fundo, já faz parte do meu trabalho há muito tempo.
Num espaço de arquitetura.
Sim. A ideia de ter a ver com o espaço e com a representação do espaço, fazia sentido. Há duas séries que estão aqui, que têm esse título também: “Corpos e Espaços”, em que misturo coisas mais espaciais e elementos mais arquitetónicos com representações de anatomia, como esqueletos, e outras mais.
Sempre nos habituaste a linhas muito corretas e retas, como se houvesse sempre um pensamento matemático na tua escultura, para além deste registo de expansão e amplitude.
Depois acabam por ser camadas e camadas. Coisas que são semitransparentes, outras que têm uma escala maior, uma escala menor, outras que têm representação de perspetiva. Aliás, estes desenhos começaram no fundo pelos mais antigos que são de 2018, que fiz a partir da planta da casa dos meus pais, quando a minha mãe morreu e deixámos de ter a casa.
Foi como um registo que quiseste fazer?
Foi deixar a memória desfazer-se. Foi despedir-me da casa. Fiz vários desenhos desta série que se chama Ó, pois tem a ver com a Rua Garcia da Orta (em Lisboa), onde era a casa. A partir daí, voltei a este tema das maquetes, das plantas e dos espaços arquitetónicos, uma coisa que já tinha feito antes e que faço recorrentemente.
Como se estivesses sempre a construir. Há sempre casa na tua obra, não é?
Há casa, sim. Há espaços interiores e espaços que se podem percorrer. Gosto também muito da ideia, tanto no desenho como na escultura, de escalas diferentes e de tempos diferentes. Há coisas que parecem ter escala factual, como esta peça de escultura tem a dimensão próxima do tamanho de um corpo humano. Não é uma ficção, é uma obra que nos interpela. Uma vez olhando dentro deste volume, perde-se essa noção de factualidade e entra-se num espaço mais mental e mais onírico. Um espaço que tem a ver a ficção. Um amigo meu dizia-me ser uma mistura de neoclassicismo com o barroco.
Mas isso é já um hábito teu: as reinterpretações dos clássicos. Estavas a falar da Memória. A partir deste teu espaço de invenção, queres resolver o mundo?
É uma tentativa de perceber o mundo. Como é que se entende o mundo através da memória, através da História e do que vamos acumulando. Quando olhamos outra vez para o mundo, vemo-lo com essa carga pessoal. Não há um olhar inocente, obviamente. Por mais que a pessoa que quisesse. É sempre um olhar cheio de referências e de vivências. Até a partir do nosso próprio corpo.
Estamos sempre a contar a nossa história?
Estamos sempre a contar a nossa própria história. Simultaneamente, a nossa história e a História com H grande.
Começaste uma escola na escultura em Portugal há muitos anos. Essa escultura passa sempre para os desenhos e os desenhos passam para a escultura?
Sim. São autónomos, vivem nos seus próprios mundos. Tem a ver com o mundo do gráfico, do bidimensional, com a História da pintura, do desenho e da escultura. Estou sempre a tratar temas paralelos. No fundo, é sempre o mesmo movimento, mas tratado de maneiras diferentes.
Falaste há pouco de corpos, da presença de corpos na tua obra.
Há uma série de desenhos que se chama mesmo “Corpo”: “Corpo 1”. “Corpo 2”, etc. É um pé, é um coração, são os intestinos…
Não costuma ser muito figurativo…
Aqui está desenhado algo que se identifica. A tua mão procura essa ligação. Habitualmente, o meu trabalho é menos figurativo.
Aqui, é declaradamente e acintosamente a figuração de uma coisa real. Mas também há uma série com uma figuração mais encapotada, como os padrões que repliquei nos desenhos. São retirados dos quadros de um pintor russo do século XV, Andrei Rublev. Usa muito padrões nas vestes dos santos. Também usei esse padrão. O santo não está propriamente lá, mas há assim uma espécie de convocação.
É uma convocação à mortalidade, agora que falaste em santos?
Sim. A Arte tem sempre a ver com isso. A Arte tem sempre a ver com o que não está. Com a memória de algo que não já não existe. Com a preservação de qualquer coisa que já morreu. A escultura ainda mais. Tem esse lado de referência ao monumento, essa memória constante e construída, a criação de uma marca. Para que não desapareça.
E a tua escultura, sendo uma escultura intimista, e não estando no espaço público, é também do “nosso espaço” pessoal e público. A tua escultura reivindica esse espaço público em todos nós.
Acho que a Arte é sempre pública. Arte privada não tem sentido. Só faz sentido quando há essa partilha com os outros e que faça sentido para as outras pessoas.
E a seguir?
Há uma nova exposição na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa. Vai chamar-se Words don’t come easy. É um projeto que envolve esculturas e cinco desenhos. Grandes esculturas e grandes desenhos. J