Quando estou em Faro, a visita ao Museu Municipal é sempre um reencontro emocionado. Em primeiro lugar com o belíssimo edifício, o ex-Convento de Nossa Senhora da Assunção, fundado no século XVI em cujo claustro se pode ficar, ouvindo o linguajar dos visitantes, no Verão quase todos estrangeiros, e beneficiando da frescura envolvente; depois, em passagem rápida, com as coleções de arqueologia que, para mim, sintetizo nos bustos de Adriano e Agripina (lembrando-me do romance de Marguerite Yourcenar) e no espetacular mosaico do Deus Oceano, datável dos séculos II-III, excelentemente museografado; no andar superior, detenho-me nas pinturas monumentais de Vieira Portuense, representando os quatro doutores da Igreja, realizadas em 1791 por encomenda do bispo do Algarve D. Francisco Gomes do Avelar, figura fundamental da reconstrução da cidade pós-terramoto de 1755 e que me remete para o meu mestre José Eduardo Horta Correia.
Mas não só o culto securizante do passado me atrai ao Museu de Faro. Há anos que ali se vêm realizando importantes exposições temporárias, baseadas em investigação original sobre diversos sectores das coleções do Museu que preenche todos os requisitos para ser (e deveria ser) Museu Nacional. Neste momento, está patente uma notável pequena exposição sobre Joaquim Viegas, um cenógrafo que trabalhou em Lisboa mas manteve ligações permanentes a Faro, a sua cidade natal. O espólio, inventariado e estudado por Fernando Rosa Dias, é completado com algumas peças oriundas da Escola de Belas Artes de Lisboa onde o artista estudou e o curador é professor. Já antes, o Museu havia apresentado (com um catálogo de referência) a excepcional colecção de cartazes de cinema que Viegas foi reunindo e que é única em Portugal e rara em todo o Ocidente.
Em termos de arte contemporânea, o Museu de Faro, no âmbito de um protocolo com a Fundação Millennium bcp, tem apresentado importantes exposições que juntam peças daquela Coleção com outras, ou das coleções do Museu ou de outros artistas especialmente convidados. Foram comissariadas por Nuno Faria e lembro-me de uma delas, dedicada aos pintores naturalistas que terminava com um conjunto esplendoroso de “paisagens” sem referência precisa de Ilda David.
Este ano, o desafio era abordar a Coleção a partir de artistas algarvios ou que, por motivos diversos, se fixaram ou passaram pelo Algarve. O comissariado é de Fernando Rosa Dias (apoiado pelo diretor do Museu, Marco Lopes) que, para a contextualizar, prepara o catálogo com um extensivo estudo cheio de novidades. A investigação que vem realizando há anos, com a exaustividade documental que o caracteriza, vai, por exemplo, valorizar um detalhe importante que anda esquecido. Confesso que fiquei surpreendida quando, à entrada do primeiro núcleo da exposição (instalado no espaço mágico da antiga capela do convento) deparei, recolhido mas não abafado numa vitrina, com uma belíssima pintura de Henrique Pousão, cedida pelo Museu Nacional de Soares dos Reis. É um estudo ou uma variante, em pequeno formato, da grande tela As casas brancas de Capri. A energia azul da luz mediterrânica e o branco faiscante da pequena casa cúbica com cúpula remetem o visitante de Capri para Olhão, cidade onde Rosa Dias prova que o pintor viveu depois do regresso de Itália e antes de se recolher a Vila Viçosa onde morreu aos 25 anos.
Pousão “descobriu” Olhão onde não lhe terá passado despercebida a arquitetura que irá ser qualificada de “cubista” pela geração modernista de 1920. Rosa Dias estuda fontes inéditas para provar a notável dinâmica das elites algarvias na promoção da modernidade, tanto na literatura como na pintura, com relacionamentos constantes não só com Lisboa mas também com Espanha. Não me compete a mim divulgar esta excecional investigação que fundamenta a atractibilidade da arquitetura de Olhão para pintores como Eduardo Viana e Mário Eloy, impulsionados nomeadamente por Roberto Nobre. Mas não posso deixar de referir a defesa que este último fez, em 1923, do projeto para se criar, no Algarve, uma “Exposição Permanente de Pintura” porque “o Algarve, o país da cor, tinha naturalmente as condições para ser um alfobre de pintores”.
Rosa Dias recorre às colecções do Millennium bcp, do Museu de Faro e do Museu Nacional de Arte Contemporânea para dar a ver obras de pintores que são sobejamente conhecidos mas também de outros que não o são, mas permitem perceber que o Modernismo é um conjunto de práticas com considerável diversidade interna e articuladas, por vezes de modo eficaz, com as estéticas vigentes da tradição académica e naturalista. Ou seja, este núcleo da exposição permite confirmar o que Rosa Dias vem proclamando como historiador da arte: não há linhas únicas no percurso da modernidade e urge alargar o panteão dos estudados por José-Augusto França a muitos outros, envolvendo uma pluralidade de dinâmicas e relacionamentos nacionais e internacionais.
Quanto aos artistas contemporâneos, a seleção recorre tão só aos excelentes recursos da Coleção Millennium bcp, permitindo que o comissário discuta as dinâmicas criadas desde os anos de 1960, promovidas por artistas que se fixam no Algarve (em primeiro lugar Joaquim Bravo, infelizmente não representado): Álvaro Lapa durante um curto período e depois Costa Pinheiro e René Bertholo. Há também a considerar Manuel Baptista, nascido em Faro e que, trabalhando em Lisboa, nunca deixou de regressar à casa dos seus pais que hoje continua a ocupar. A obra exposta de 1982 integra-se, como bem afirma Rosa Dias, num consistente “projeto plástico” que dota a geometria de uma versatilidade imaginosa e enérgica. Fá-lo através da eficácia da composição que as cores permanentemente alteram, muitas vezes apoiadas na diversidade das matérias utilizadas.
Na última sala, os recursos da Coleção Millennium bcp permitem expor duas obras esplendorosas de Júlio Pomar que, sem nunca se ter fixado no Algarve, foi, como todos nós, sensível àquela atmosfera em que o mar parece céu e o céu parece mar. Le bain turc de 1968 desloca as banhistas de Ingres dos seus interiores fechados para a plena luz de uma praia em que apetece mergulhar. Quanto a Gaivotas, 1980, manifestam a luxúria com que Pomar manejava o óleo, inventando os lugares como o lugar único da pintura.