Entre as curiosas experiências portuguesas, está, por exemplo, a de aos 85 anos ser convidado para uma Autobiografia de uma página, com o espaço roubado por três fotografias. De facto, o JL não tem culpa de que eu tenha a idade que tenho, e um percurso que vem dos anos 40, dos encontros com António Maria Lisboa, Cesariny, Mário Henrique Leiria etc. etc. (e da percepção da guerra de Espanha), até aos encontros com figuras responsáveis do grupo de André Breton, como José Pierre, Arturo Schwarz, Sarane Alexandrian, Jean Schuster, Jorge Camacho, e Henry Michaux, o que é de facto muito para quem como eu não procura convívio, e desde sempre se declara como não artista, e não intelectual.
Então tive como amigos próximos o Areal, o D’Assunção, o António Quadros, o Jorge Vieira, o João Rodrigues, o Barahona, o Lima de Freitas, o Raul Perez, o Mário Botas e o Herberto Hélder, que me dedicou um dos seus poemas e prefaciou o catálogo de uma exposição minha. Também no campo das amizades quis insistentemente expor comigo o grande pintor do surrealismo Eugénio Granell. Amizades refiro ainda a do grupo felizmente muito activo de Chicago. E a de um dos iniciadores do grupo «Cobra», Edouard Jaguer. E os notáveis iniciadores do surrealismo na Holanda, tendo Laurens Vancrevel prefaciado com um texto sensível uma das minhas exposições. Outros nomes e obras poderia referir, mas difícil seria, aqui, provar que não se trata de vaidade, mas sim de constatação, e responsabilidade. Recentemente, numa homenagem que alguns amigos me prestaram em Paris, Sarane Alexandrian leu três páginas situando-me no quadro do surrealismo português. Também referências existem em dicionários e livros diversos. Em 1981 tive um convite para figurar na Bienal de Veneza, que não se concretizou numa participação pela minha inabilidade para estas coisas, mas também pela intervenção de quem não gostaria de me ver ali. A documentação sobre este assunto foi reunida, tanto quanto possível, pelo Lima Freitas, no álbum editado pela SOCTIP.
Passei 12 anos em África, não para fazer fortuna, mas para conhecimento e reconhecimento daquela civilização. Evidentemente, com esta fuga para África (não para Paris) coroei o meu descaminho, referido por amigos como Natália Correia, Ernesto Sampaio, Rui Mário Gonçalves, Eurico Gonçalves, Bernardo Pinto de Almeida, André Coyné, Maria João Fernandes, etc. etc; e José-Augusto França já em 1949 escrevia: «Artur do Cruzeiro Seixas, com desenhos de invenção teratológica como imagens dos contos de Lautreamont, mostrava grande profundidade poética e qualidade plástica.» Mas, evidentemente, o meu caminho nada tinha a ver com o de José-Augusto França. Fugido do horror da guerra colonialista, espelho fiel da loucura de Salazar, dirigi a Galeria S. Mamede, onde expus Cesariny, Areal, a Paula Rego das inesquecíveis grandes colagens, D’Assunção, Carlos Calvet, Raul Perez, Mário Botas, Vieira da Silva, Alechinsky e Henri Michaux.
Nos anos 90 leguei à fundação Cupertino de Miranda-Centro de Estudos do Surrealismo uma extensa colecção que tem a singularidade de não ter sido feita com dinheiro, mas sim com paixão. A partir dessa colecção realizou a Sociedade Nacional de Belas Artes, em 2005, uma exposição ocupando todo o salão principal, onde por exemplo se tornava legível o significado histórico dos desenhos de Júlio (dos Reis Pereira), datados dos anos 30.
Em África expus nos anos 53 e 55, sob a égide de Aimé Cesaire, levantando grande movimento de opinião. Desde 2001, pela mão amiga da poeta e escultora Isabel Meyrelles, centenas de poemas que me atafulhavam as gavetas têm sido publicados, estando para sair o 4.º volume. E um pequeno livro antológico foi publicado no Brasil. Por trás deste extenso biombo, não quero deixar de referir a minha apaixonante experiência homossexual.
Quanto ao «profissionalismo» e ao «mercado» não me interessam: dei mais pintura do que a que vendi.
Hoje toda a gente passa por faculdades, e o mundo infelizmente não melhorou; se tenho alguma vaidade, ela resume-se a não ter sequer frequentado o liceu. E reprovei em Desenho durante dois anos, na António Arroio. Tudo o que reivindico é um lugar entre o Facteur Cheval e a nossa Rosa Ramalho. Quero acrescentar ainda que devo aos meus pais, uma enormíssima noção de Liberdade e de amor. Foi isso de resto tudo o que deles herdei. A este país tenho que agradecer todo o lado escuro da minha experiência.
Em 1993 doei à Biblioteca Nacional de Lisboa inúmeras obras originais dos anos 40/50 e cartas de muitos dos nomes que acima refiro, principalmente de Cesariny; mas também fazima parte desse legado os originais de Climas ortopédicos, Claridade dada pelo tempo e Pas pour les Parents, de Mário Henrique Leiria.
Com José Pierre levei a efeito, na Galeria de Vilamoura, que então (1985) dirigia, uma notável exposição, «O Surrealismo ou a linguagem do desejo», que pela primeira vez mostrava aqui Bellmer, Konrad Klapheck, Wilfredo Lam, Conoy Maddez, Matta, Silbermann, Telémaque, Ivan Tovar, Toyen, etc, etc. Mais do que o desenho, a pintura, a escrita, me apaixonou o «objecto Surrealista», de que alguns me aconteceram como «L’Oppresseur», a «Chávena com a asa por dentro como todos nós», «Objecto do quotidiano» ou «A Mão em 1952», que está exposta no centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
A partir de 1969 alguns cartões meus foram executados na Manufactura de Tapeçarias de Portalegre, e por sugestão amiga do Armando Jorge fiz cenários para o Ballet da Gulbenkian e para o S. Carlos. Das diversificadas exposições no estrangeiro, destaco uma em Amsterdão com Philip West, Rik Lina e Raul Perez; e «A Phala», em S. Paulo. Refiro ainda uma exposição individual em Santiago de Compostela, na Fundação Eugénio Granell
E de colaborações em revistas surrealistas como Tortue Liévre, Brumes Blondes, Infosurr, Phases, Ellebore, Superieur Inconnu ou uma extensa referencia na Pleine Marg, de Dezembro de 2005. Como memória de grandes exposições internacionais refiro Chicago, em 1976, na «Marvelous Freedom Vigillance of Desire». Também diversas entrevistas em jornais, na rádio e na TV, com Maria Elisa, Baptista-Bastos, Bárbara Guimarães, e outros.
Mas nada disto aconteceu batendo insistentemente à porta deste ou daquele ou telefonando. E viajei assiduamente. Escreveu Edouard Jaguer: «Cruzeiro Seixas, talento insolente à força da modéstia.» Mas mais uma página seria necessário para tentar provar que também não é modéstia que se trata…
De Sarane Alexandrian transcrevo: «Cruzeiro Seixas vai mais longe do que o sonho». E de uma carta de Herberto Hélder: «Do que se diz se extrai algum oiro, o verdadeiro, o vivo, o alquímico, e isso o que é mais visível em si; não sei de imagem sua que não venha dessa dolorosa substância de baixo.»
Para terminar transcrevo alguns Desaforismos:
…A eternidade é hoje, ou não será nunca…
…Não quero a liberdade que me dão os políticos, mas a minha…
…Não sou um génio e sei que o não sou – o que é quase genial…
…A verdade é a mais terrível das mentiras…
…O corpo é como o céu, infinito…
…A nossa grande esperança é sermos expulsos do inferno, como fomos do céu…
…Cada português é um labirinto sem saída…
…Quanto mais vejo à minha volta pessoas triunfantes, mais forte é a atracção de ser um falhado…
…O importante não é conquistar a liberdade possível; o importante é o que fazer com ela…
…O que não sei é o principal do meu saber…
Enfim, à volta do que aqui deixo, que de estórias!
O meu voto é de esta experiência possa ser útil a alguém.
Ela é de tal forma apaixonante, que chego a esquecerque é a minha.