Está a passar a quarentena, em família, na sua casa perto de Aviz, no Alentejo, o mesmo local onde compôs alguns dos temas de O Método, o seu novo álbum, com produção do italiano Federico Albanese. Trata-se de um dos seus álbuns mais coerentes, com colaborações valiosas, incluindo a da sua filha, Sofia, no single “A Bailarina”.
Os três filhos estudam música e tocam piano, a mulher já habitualmente o ajuda nas letras e em pequenos arranjos das canções, pelo que se espera que esta quarentena seja criativamente muito produtiva. Mas, para já, fica o amargo da boca de não seguir com a digressão do disco, que já tinha datas marcadas para a Europa. É tempo de resguardo e paciência.
Entre bandas sonoras, colaborações e gravações ao vivo, não de aritmética simples, já ultrapassa os 20 a contabilidade dos álbuns gravados por Rodrigo Leão (RL), 55 anos. O primeiro, Ave Mundi Luminar, saiu há 27 anos. Na altura em que ainda integrava os Madredeus.
O músico, de resto, abandonou o grupo que havia fundado com Pedro Ayres Magalhães, com uma enorme projeção internacional, para se dedicar de corpo e alma ao seu projeto a solo, com ideias que não cabiam na linguagem do Madredeus. Já antes havia interrompido a sua participação na Sétima Legião, grupo histórico do pop português, que formou nos anos 80, com Pedro Oliveira, Ricardo Camacho e Gabriel Gomes, entre outros.
Músico autodidata, RL vê-se sempre mais como um compositor do que como um intérprete. Ao longo dos anos, a sua música, instrumental ou vocal, tem ganho o interesse de públicos variados, um pouco por todo o mundo. Já participaram nos seus discos importantes vozes, como as de Beth Gibbons ou Adriana Calcanhotto. Nos seus mais recentes álbuns, gravou com a Orquestra e o Coro Gulbenkian (O Retiro, 2015) e em duo com o escritor de canções australiano Scott Matthew (Life is Long, 2016). No novo álbum conta com as participações, entre outras, do dinamarquês Casper Clausen e do produtor italiano Federico Albanese. Um álbum essencialmente instrumental, mas em que se ouve cantar em inglês, russo e até numa língua inventada. RL é um músico do mundo… e fora dele.
Jornal de Letras: O ‘método’ é normalmente uma ferramenta para chegar a algum sítio, mas a mudança de ‘método’ também pode influenciar o resultado final. Foi isso que se passou neste álbum?
Rodrigo Leão: As escolhas dos títulos obedecem a um processo sempre difícil e algo obsessivo. Havia um tema que tinha como nome provisório O Método e aos poucos aquilo começou a fazer sentido. Foi um disco que demorou mais tempo a ser feito que os anteriores, convidámos uma pessoa de fora para se juntar à equipa com que costumo trabalhar nos discos (João Eleutério e o Pedro Oliveira), o Federico Albanese. Andei muito tempo em busca de um caminho para este trabalho e acabámos por encontrar um método para o concretizar.
Na criação fala-se muito em inspiração… Mas a inspiração sem método não tem por onde andar…
Quem me conhece bem sabe que sou pouco metódico. Sou muito confuso, desorganizado, mas a falta de método também pode ser um método a seguir…
Mas mudaste alguma coisa na forma de trabalhar?
Não particularmente, a minha maneira de compor mantém-se igual ao longo deste anos. É algo muito intuitivo. Vou guardando ideias no computador. Faço isso tanto no Alentejo, quanto em Lisboa, quanto em quartos de hotel durante as digressões. A determinada altura há um método para escolher o material que faz mais sentido trabalhar com músicos e produtores.
Então o que mais mudou foi a produção?
Sim, preocupámo-nos mais neste disco com a escolha de sons, passámos sons por gravadores analógicos, num estúdio em Berlim…. Depois de ter feito três trabalhos tão diferentes – A Vida Secreta das Máquinas, já com uma abordagem eletrónica, mas com o formato de canção; O Retiro, com a Orquestra Gulbenkian; e Life is Long, a parceria com o Scott Meetthew – não sabia ao certo por que caminho seguir…
A entrada do Frederico Albanese foi refrescante nesse sentido?
Sem dúvida, sabíamos o que queríamos, mas ele ajudou-nos a encontrar o caminho para lá chegar. De início, eu tinha cerca de 40 ideias, depois passámos para 17 e acabaram por ficar 12. O Federico veio provocar alguma mudança. Sempre tive muito receio em introduzir alguém de fora. Uma das pessoas que insistiu para que isto acontecesse foi o António Cunha, o meu manager e amigo de longa data.
Então, o verdadeiro novo método foi a colaboração de Federico Albanese?
Ele vem da área da nova música eletrónica e dá-nos uma outra sonoridade. Por exemplo, para os arranjos de “A Bailarina”, que foi das primeiras ideias para este trabalho, o Frederico veio ter connosco a Lisboa e trabalhámos juntos uma série de arranjos. As coisas resultaram bem.
“A Bailarina” é uma das boas surpresas do disco. Uma canção que conta com a participação da tua filha e da tua mulher. Como foi trabalhar em família?
Os meus três filhos estudam música e a Sofia, a mais nova, acabou por fazer esta sequência de vozes em reverb no computador. Juntamente com a minha mulher fizeram aquela letra com palavras que não existem. Tenho sempre o hábito de mostrar o meu trabalho à família e a amigos chegados.
Sempre experimentaste outros idiomas para os temas vocais, como o latim ou o francês, mas nunca foste tão longe como neste disco em que, apesar de ter muitos temas instrumentais, também se ouve cantar em russo e até nessa língua imaginária….
Foi pensado desde o início como um álbum essencialmente instrumental, apesar de usar um coro juvenil e também algumas vozes, como da Ângela Silva, cantora ligada ao canto lírico, mas aqui usa a voz de forma diferente. Ao longo destes 26 ou 27 anos de trabalho sempre procurei reunir influências muito diversas, desde o tango, ao pop britânico, passando pela música brasileira. Isso deu-me a possibilidade de trabalhar com músicos muito diferentes, como a Beth Gibbons ou a Adriana Calcanhotto. Nunca me fechei num género musical nem com um grupo limitado de músicos. Mas este acaba por ser um dos álbuns com mais unidade. Basta pensar em trabalho como Mãe e Cinema que tinham canções em castelhano, inglês e português. Este álbum está mais focado numa só direção.
De que forma a musicalidade do idioma influencia uma canção?
Grande parte das músicas que faço começam por ser instrumentais. Muitas vezes é o próprio tema que pede uma língua. Como o afete ou o Jeux d’amour que pedia a língua francesa. Ou o Happiness, cantado em inglês pela Sónia Tavares. Depois de dez anos a trabalhar com grupos como a Sétima Legião ou Madredeus comecei a compor músicas que felizmente ou infelizmente não cabiam ali. Por isso, uma das minhas preocupações na altura foi afastar-me da língua portuguesa, para marcar ainda mais a diferença em relação ao que tinha feito com esses grupos.
Contudo, também tens aqui “Inside”, uma colaboração com o dinamarquês Casper Clausen, cantada em inglês e com um registo mais pop…
Não tinha de todo a ideia que neste trabalho integrasse um tema cantado em inglês. Mas acabou por acontecer uns meses antes de entrarmos para estúdio. Há muito que gosto do trabalho do Casper, que vive ao pé de mim, no Bairro Alto. Mas foi o Federico Albanese que sugeriu a colaboração. Não tinha em mente incluir uma canção mais pop, mas aquilo surpreendeu-me positivamente.
Ao mesmo tempo, neste disco tocas mais piano acústico, o que acaba por ser irónico num trabalho com uma base eletrónica…
Os meus três filhos tocam piano. Ouço-os todos os dias. Qualquer um deles tocam melhor do que eu. E aos poucos fui perdendo o receio e comecei também eu a tocar mais um pouco. De tal forma que nos concertos também tocarei piano à parte do sintetizador.
Isso em detrimento das cordas…
As cordas acabaram por não ter um papel tão visível, mas estão sempre lá. Como em outros disco, está lá o quarteto de cordas, liderado pelo Carlos Tony Gomes, que também tratou dos arranjos.
O disco, cantado em várias línguas, com músicos de diferentes sítios do mundo, também é um fruto da globalização. Olhas para ti como um músico global?
Não vejo a minha música com uma influência muito presente da música portuguesa. Isto apesar de por vezes usar instrumentos como o acordeão e em alguns temas identificar-se aquela melancolia que se pode associar a Portugal. Mas não há barreiras quando estou a tentar fazer os trabalhos. Convoco elementos que são muito diferentes e isso é muito saudável para todo o processo.
Neste disco também nos surpreendes com um conjunto de desenhos. És um homem de sete ofícios?
Nunca tive jeito para desenhar, mas de há uns anos para cá comecei a fazer estas composições abstratas. De alguma forma estes desenhos estão ligados às músicas deste trabalho, porque os fiz nos intervalos, em busca de inspiração. Uns meses antes do disco sair, pedimos a Oscar & Gaspar para fazer o vídeo de “A Bailarina” a partir de alguns desenhos meus. Quero continuar a desenhar apesar de não ter pretensões de me tornar um pintor.
Vivemos agora em período de crise sanitária e convidados ao teletrabalho. Mas isto de ficar em casa não é propriamente novidade nem grande obstáculo para os compositores. Já está habituado a trabalhar à distância?
Sem dúvida, tenho um estúdio portátil, com um sintetizador e um computador com a minha biblioteca de sons e um dos meus objetivos é compor durante a quarentena que estou a passar no Alentejo. A verdade é que as primeiras semanas foram algo atribuladas e ainda não consegui começar a trabalhar. Mas brevemente vou tratar disso.
Do lado da composição é previsível que se assista a uma explosão criativa?
Espero que sim, que haja algo depois disto que se possa aproveitar. Para mim, ainda não percebi de que forma isto poderá influenciar as minhas composições.
Com quatro músicos fechados na mesma casa sairá algum coisa em conjunto?
Não sei… Poderá surgir alguma ideia… Mas os meus filhos são intérpretes de música clássica e praticam muitas horas por dia. Eu dedico-me sobretudo à composição e fico mais com as noites para trabalhar.
Na parte que te diz respeito estás preocupado com os concertos cancelados?
É difícil tirar conclusões sem saber quando isto vai terminar. Já percebemos que vai ser mais longo do que aquilo que se esperava inicialmente. Poderá haver a experiência de fazermos um concerto em streaming, mas ainda não é certo. O primeiro instinto é sobreviver.