1 É uma hora da madrugada de terça-feira, 31 de março, em Portugal.
Em Hong Kong são oito da manhã e em São Francisco 17 horas de segunda-feira. Neste momento está a começar o encontro “Coffee & Cocktail” via zoom, por iniciativa de comunidade Leonardo, uma organização fundada em Paris pelo artista e engenheiro aeronáutico Frank Malina com o propósito de criar um canal de comunicação entre arte e ciência. Para além das publicações com a chancela MIT – Leonardo e Leonardo Music Journal – esta comunidade patrocina encontros, exposições e performances com existência exclusiva na esfera virtual.
A pandemia tem, como não podia deixar de ser, lugar de destaque no debate. “Your Covid-19 Rapid Response Toolkit for Art and Social Connecting” está na página de entrada do sítio na internet. Aqui, para além do tal encontro “Coffee & Cocktail” (todas as segundas e quintas), pode-se mergulhar em coisas como “Coronavirus Tech Handbook”, uma página com links para centenas de documentos relacionados com a pandemia, que contém propostas de e para tecnólogos e artistas, e organizações públicas e privadas. Por todo o lado, à medida que a pandemia alastra no mundo, há eventos a surgir e novas ações de intervenção.
Entretanto, na linha da frente, os trabalhadores da saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares) lutam minuto a minuto contra o vírus; outros garantem a nossa sobrevivência, desde aqueles que abastecem os mercados aos que recolhem o lixo, passando pelos trabalhadores dos serviços de fornecimento de energia e de água. Bem hajam! Obrigado também àqueles que no silêncio dos laboratórios investigam incansavelmente.
Ao mesmo tempo, durante os intermináveis dias, há milhares de ofertas para quem está fechado em casa e ligado à Internet: desde aquelas que a nova indústria audiovisual propõe (Netflix, HBO, etc.), até propostas menos convencionais. Todas as noites, por exemplo, através do Instagram, Bruno Nogueira deixa-nos entrar na sala de sua casa para acompanhar divertidos encontros virtuais, conversas mais ou menos íntimas e karaokes desafinados com amigos e colegas. De repente, cerca de 40 mil pessoas passaram a acompanhar diariamente estas conversetas, enquanto acrescentam emojis e likes que correm nos ecrãs dos nossos telemóveis. A fronteira entre o público e o privado é definitivamente derrubada, como o é nas páginas do facebook e em outras plataformas que inauguraram outros modos de convivialidade. Até parece que estamos todos mais perto. Estaremos?
2 As artes em geral e as artes performativas em particular, depois da perplexidade e do receio iniciais, começam a reagir. Não obstante – como se pode ler no número anterior deste jornal – com esta pandemia “tornou-se mais visível a fragilidade do tecido cultural e artístico, com companhias, estruturas e artistas a pensar como pagar salários e garantir a sobrevivência, num sector com muitos recibos verdes e precariedade”. Ações de angariação de fundos, como aquela que o colecivo de produtores e artistas Teia 19 lançou, andam lado a lado com outras mais institucionais, de enquadramento autárquico e governamental de apoio às artes; também a Fundação Calouste Gulbenkian lançou um fundo de emergência que contempla o sector cultural e artístico.
À data em que escrevo, surgiu o movimento “Portugal entra em cena”, que se apresenta com a sugestiva epígrafe de “entrar em cena hoje, para que a cultura tenha amanhã”. Foi criada uma plataforma digital onde os artistas podem lançar ideias e ver os seus projetos remunerados. Para tanto, há que atrair empresas públicas e privadas, pedindo-lhes que lancem desafios para que os artistas possam responder com ideias concretas. Parece simples e é certamente meritório. Será suficiente?
Diversas instituições – teatros, fundações, companhias, etc. – aventuram-se ou reforçam as suas iniciativas na internet, algumas delas já reportadas nas páginas deste jornal. Por exemplo, a Fundação de Serralves, lançou o SOLE (Serralves On Line Experience) que pretende garantir a partilha de experiências artísticas, ambientais e educativas. O Teatro Nacional criou o D. Maria II em Casa, disponibilizando online espetáculos de entre as dezenas de produções e coproduções que subiram ao palco. O Teatro Nacional de São Carlos iniciou a disponibilização online de conteúdos de livre acesso agregados pela designação #SãoCarlosEmSuaCasa. Entre conferências em streaming, como aquelas que a Culturgest promove, e podcasts, como o Boca a Boca do Teatro Viriato, em Viseu, todos exploram plataformas digitais, ensaiando novos modelos de relação com o público.
Onde ficam os espetáculos de teatro, de dança, de circo, de música, no meio disto tudo? Será que as artes vivas – para adotar a designação francesa – podem encontrar outros palcos, que não os teatros, e outros intérpretes, que não os performers humanos? Será que o “teatro” – teatro no sentido amplo do termo – pode sobreviver a um confinamento prolongado?
3Nos finais dos anos 50 do século passado, Grotowski escreveu que o teatro poderia existir sem maquilhagem, sem figurino e sem cenografia, sem um espaço isolado para representação (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. Só não poderia existir sem o relacionamento entre o ator e o espectador, de comunhão percetiva, direta, viva. Este era um dos pilares daquilo que o diretor polaco designava como “teatro pobre”. “Pobre” porque deveria ser erigido a partir de processos de subtração de efeitos estranhos ao corpo do ator, e pelo regresso à equação primordial da experiência dramática.
Depois de Grotowski, muita coisa aconteceu. Na viragem do século, o teatrólogo Hans-Thies Lehman avançava com o conceito de pós-dramático para designar “o teatro que se via impelido a operar para além do drama”. Ao mesmo tempo, foram sendo ensaiadas diferentes zonas de intermediação, nomeadamente plataformas digitais e outros modos de comunicação eletrónica, e desenvolvidos projetos que se poderiam classificar algures entre exposição, instalação e performance.
Neste quadro, outras situações foram sendo experimentadas em cena, e muitos outros espaços foram sendo apropriados pelas linguagens performativas. Os corpos humanos poderiam ser substituídos por máquinas ou submetidos a um apagamento extraordinário. Na imediação do desaparecimento de atores e bailarinos estão, por exemplo, alguns dos trabalhos de Kris Verdonck; com dancer #3, ele utiliza um robô suspenso da teia que assim que se apoia no chão, pula até cair, uma e outra vez, mostrando uma ação falhada a que regressa incansavelmente. Por outro lado, a companhia teatral El Conde de Torrefiel coloca, em La Plaza, os intérpretes no plano neutro do palco, fazendo-os mover, anónimos e mudos, por um espaço cenográfico e coreográfico circular; a “agora” – a praça da cidade grega, lugar de convívio e de comércio de bens e de ideias – revela-se aqui não apenas um lugar de encontro, uma marca da cidade, mas também uma zona de tensões entre pessoas e entre estas e as coisas.
4Talvez uma das melhores definições de cidade seja aquela que nos diz que este é o lugar onde podemos encontrar o estrangeiro. A cidade, a boa cidade, é aquela que propicia este encontro e que o regula de maneira aberta. O que é hoje feito da cidade e das suas praças? O Covid-19 pode ter desde já um terrível efeito: o de aniquilar as possibilidades de encontro em carne e osso. E, perversamente, o de transformar o vizinho, aquele com quem nos cruzávamos diariamente, em um estranho potencialmente ameaçador.
Na cidade grega, onde o teatro nasceu, este existia também para instalar o encontro entre vizinhos e regular as tensões com tudo o que era estrangeiro, fosse este o que era exterior à cidade ou o estranho no interior de cada ser humano. Este teatro podia existir sem figurinos, sem efeitos luminosos, sem música composta, sem cenários, mas nunca sem um encontro com a memória, com a estranheza e com o outro.
É verdade que existem hoje milhares de ofertas para quem está ligado à Internet, experiências que nos acompanham durante os dias intermináveis de reclusão. Mas o cheiro, o sabor, a vibração dos outros e as ressonâncias que podem ter sobre cada um de nós, tudo isto é uma experiência que exige a presença física. Estar ao lado é sentir a diferença.
Por isso, todo o teatro é hoje, mais do que nunca, indispensável. E também por isto, é urgente reinventar outras modalidades de toque, mesmo que tal obrigue a uma nova configuração das esferas íntimas e a um novo equilíbrio entre o público e o privado. Novos palcos? Certamente; para tanto talvez seja necessário rever os lugares da performance, ensaiando outras escalas e dispositivos. Mas, sobretudo, não perder de vista a absoluta necessidade de comunhão percetiva e direta, para que as artes vivas permaneçam vivas.J