Há livros que o correio traz que são como milagres a acontecer. Tinha tido uma discussão com uma amiga, garantindo-lhe que não existia escrita feminina, argumentando com cinco razões (demasiado extensas para aqui reproduzir). Ela argumentava com as razões presentes no livro da Isabel Allegro Magalhães, O Sexo dos Textos (1995), que não me convencera aquando da sua leitura. E eis que chegou o correio, trouxe-me o livro de Susana Moreira Marques, Terceiro andar sem elevador. Notas de Lisboa, ora publicado.
Comecei a lê-lo e a boca abriu-se-me de espanto.
Aquelas páginas só podiam ter sido escritas por uma mulher, eram expressão da visão de uma mulher de meia-idade que habitava um bairro popular de Lisboa (Arroios), uma mulher que construíra um pequeno mundo, que ainda não desistira dele, mas cujo encantamento urbano fora, porém, já assaltado pelo ceticismo dominante europeu, aquele que nos diz que, se nunca vivemos tão bem, nunca tivemos casas, ruas, restaurantes, escolas, livrarias, roupas, vizinhos tão bons e belos, sentimos, porém, ainda que inconscientemente, uma culpa interior cuja origem desconhecemos, que nos obriga a problematizar tudo o que conquistámos. O mesmo sentimento e a mesma culpa que assaltou a Geração de 70 e do seu conceito de decadência.
O livro de Susana Moreira Marques não obedece a nenhum género literário, não é ficção e é ficção, porque fabula, não é ensaio, mas é ensaio, devido às explorações intersticiais que desenvolve, não é história de Lisboa, mas faz parte dela. E, paradoxo dos paradoxos, a ninguém se dirige em especial, não tem nenhum público específico a conquistar. Até o seu estilo é especial: fragmentário, como o de Fernando Pessoa, avançando como um puzzle a que faltará sempre uma última peça para ficar completo.
Uma caraterística, porém, possui pela negativa: a ausência de desejo de Poder, isto é, de domínio e ostentação, de se mostrar como diferente e, assim, conquistar o leitor. Pessoa escrevia fragmentos à vida, Susana Moreira Marques escreve notas, breves comentários do tamanho de um parágrafo, e assim vai construindo o seu mundo, um pequeno mundo, mas significativamente feminino, como alguém que à janela (antigo lugar da mulher) vê, observa e comenta para si.
É um livro feminino porque suave, repleto de comentários curiosos sobre os vizinhos, sobre as janelas, as flores, as ruas, muitos sobre as duas filhas, a comunidade, o silêncio, rememorações da vida privada, e da pública também, sobretudo as cintilações da memória como o outro lado do tempo vivido, problemas de identidade de um eu que se consciencializa, se dissolve nos outros, se problematiza na meia-idade, sempre o afeto superior à posse (p. 92, & 8).
E foi esta caraterística que me alertou para a sua escrita feminina: o afeto superior à posse, à propriedade. E a suavidade da sua escrita, nada chocante a sua narração do quotidiano, nada de descrição ou narração de escândalos que atraíssem o leitor do Correio da Manhã ou o Crime, até o título mediano, nem o rés-do-chão do Saramago (Claraboia) nem os vigésimos andares dos romances cor-de-rosa com elevadores velocíssimos. Levar as filhas à escola, coisa mais banal para ser descrita, e económica na adjetivação, “terceiro andar” apenas, diz tudo, alguém que na História procura o seu lugar num meio-termo arcaico: edifícios antigos sem elevador.
Diria que Susana Moreira Marques escreve com os sentidos, todos, não abdicando da razão, evidentemente, mas privilegia e favorece uma visão do mundo ao nível sensorial, evidenciando uma sensibilidade muito afetiva. Coisas da sua vida, não filosofias, não ideologias, não explicações sociológicas, apenas argumentação simples a rasar o dia a dia (p. 13. & 5): “Em Lisboa aprendo a arte do desvio. Essa arte de nos aproximarmos, mas sabermos afastar-nos a tempo”.
É uma arte feminina por excelência, a do “faz de conta”, a do fingimento, a de olhar para um lado tendo a atenção concentrada no lado oposto. Era, antigamente, o modo como a mulher sobrevivia entre a pretensa autoridade do pai e a nova virilidade do filho.
É uma arte de sobrevivência feminina que a autora percebe que já passou para a filha (p. 20, & 8). Ou princípios de ficção: “Uma pessoa que passa. Uma rapariga sozinha sentada numa esplanada. Um homem a atar os sapatos, uma criança a correr à frente dele. Um homem que tira o chapéu, como antigamente. Uma mulher à varanda, as cortinas corridas atrás dela. Qualquer um de nós poderia esse início de uma história, se vislumbrado no local certo no momento certo” (p. 34, & 11).
Não uma teoria a comandar a ficção, apenas um retrato humano, como se a autora estivesse à janela a contemplar o espetáculo do mundo, sem nele interferir. Não foi este, durante séculos, o papel da mulher? Diminuída na ação por pressão social, restava-lhe a contemplação e o sonho.
Susana Moreira Marques pensa com os sentidos e, ao nível da linguagem, concentra-se no corpo e na casa, na família (ou na falta dela – Irene Lisboa) e na comunidade (o bairro) e usa o leque de emoções que vão da ostentação (Florbela Espanca, Teresa Horta) ao recato (Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho. Teolinda Gersão), uma escrita não raro colonizada pelo homem, que tem sido sempre a escrita dominante, deixando, até ao 25 de Abril de 1974, um pedacinho do mundo para as mulheres (a Modas & Bordados, a Maria, o “correio das leitoras”, a literatura infantil da Ana de Castro Osório, da Virgínia de Castro Almeida e da Fernanda de Castro).
Voltaremos a este tema, o da escrita feminina.