A evocação da vida e da obra de Fernando Távora (FT) é um imperativo transtemporal, por natureza, não é necessária uma data redonda como o centenário para justificar a sua emergência. No entanto, e por outro lado, algumas das caraterísticas específicas da atualidade fazem com que a difusão desse legado seja cada vez mais imperiosa
“Távora no Tempo” é o nome dado a um ciclo de colóquios que, em conjunto com outras iniciativas, visa celebrar o centenário do seu nascimento. O primeiro deles teve lugar na Fac. de Arquitetura da Un. do Porto, no passado dia 21 de outubro. Neste momento, na sede da Fundação Instituto Marques da Silva, também no Porto, está patente uma exposição sobre a personalidade e a obra deste arquiteto, que é uma figura angular da cultura portuguesa do Século XX.
Távora nasceu no Porto a 25 de agosto de 1923 (e morreu a 3 de setembro de 2005). Ao longo das décadas de 1940 e 1950, o jovem estudante e depois assistente da Escola de Belas Artes do Porto (EBAP) iniciou também a sua atividade profissional, ora na Câmara do Porto, ora em parceria com o seu irmão, engenheiro, ora com colegas, Fernando Lanhas, Francisco Figueiredo, entre outros. Em 1945, com apenas 23 anos, FT publica um texto onde assinala com veemência a necessidade de pôr um fim à mentira arquitetónica que presidia à ideia de existência de um conjunto de características que se consumavam numa arquitetura de cariz nacional ou, se quisermos, numa Casa Portuguesa.
A questão da tradição é recorrente, não pode ser imposta nem artificialmente criada. Insurge-se contra o pré-estabelecimento de regras formais e de motivos decorativos do passado como fator de qualificação da arquitetura. Mas o espaço é contínuo, jamais fará sentido criar descontinuidades no tempo que o incorpora, menos ainda quando essas descontinuidades são empunhadas em nome de uma qualquer tradição imposta. Aquilo que FT designava por mentira arquitectónica era o desfasamento temporal em nome da forma dos objetos arquitetónicos.
Mais tarde, participa no 1º. Congresso Nacional de Arquitetura, em 1948 e colabora com o grupo portuense ODAM, Organização dos Arquitetos Modernos, o que o leva a um contacto, mais intenso e dirigido, com os mais lídimos representantes do Movimento Moderno no Norte.
Em 1951, Carlos Ramos (1897-1969), prof. da cadeira de Arquitetura na (EBAP) e grande impulsionador da pedagogia do moderno, convida-o para assistente. FT, então com 28 anos, começa a lecionar arquitetura. Inicia uma atividade pedagógica em articulação permanente e ininterrupta com o exercício de projeto e jamais abandonaria a intenção de usar a energia produzida em cada uma destas práticas para iluminar os caminhos de desenvolvimento da outra, numa ação cuja reciprocidade orgânica é difícil de avaliar, enredada que estava no entendimento holístico do tempo e da história.
É também neste período que enceta contactos que lhe permitem manter-se a par do intenso debate internacional em torno da arquitetura moderna. Participa ativamente nos CIAM (Congrès Internationaux d’Architecture Moderne) de Hoddesdon (1951), de Aix-en-Provence (1953), de Dubrovnik, (1956) e de Otterlo, (1959). Nos dois últimos, vai apresentar trabalhos, ora coletivos em conjunto com o CIAM-Porto, em Dubrovnik; ora individuais em Otterlo, com os seus projetos mais recentes, o Mercado de Vila da Feira e a Casa de Ofir.
Távora estava, portanto, bem por dentro de tudo o que de mais intensamente global, ou internacional, se desenvolvia na época, em particular das ponderadas hesitações em torno do consenso moderno que, antes da segunda guerra, tinha emergido como heroico e futurante. Mas confrontava sempre essa visão exterior, internacionalista, com o aprofundamento do conhecimento próprio acerca das matrizes identitárias mais interiores, nortenhas e portuguesas. O Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa, iniciativa cujo significado para a cultura arquitetónica coeva FT já tinha prefigurado cerca de dez anos antes, e Francisco Keil do Amaral (1910-1975) colocara sem peias sobre a mesa em 1947, tivera finalmente luz verde do Governo para avançar.
Em meados da década de 1950, Távora empenha-se então num mergulho ao interior dos modos de ocupação do espaço no Noroeste do país, deduzindo sempre do compromisso para com o conhecimento da nossa cultura material as mais sedutoras relações com o elã racionalista, por um lado, e com o modo de ser português, por outro. A Casa de Ofir (1958), o Mercado Municipal de Vila da Feira (1959) e o Pavilhão de Ténis da Quinta da Conceição, em Matosinhos (1956-1959), são o corolário mais que perfeito desse equilibrado relacionamento.
E é também em 1959 que FT concorre a uma Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para uma visita de estudo a universidades norte-americanas, a realizar no ano seguinte. A bolsa é-lhe concedida e é depois alargada à participação na World Design Conference, WODECO, que iria decorrer em Tóquio, em maio de 1960.
Távora parte para os Estados Unidos a 13 de fevereiro de 1960. Visita também o México e atravessa o Pacífico com escala em Honolulu. Depois da estadia no Japão, parte para Carachi, no Paquistão, com passagem por Banguecoque. Vai depois ao Líbano, visita Beirute e Balbeque e ruma em direção ao Cairo. Do Egito parte para Atenas e regressa finalmente a Portugal, a 12 de junho. Cumpre os propósitos iniciais, mas vai muito mais além deles, transformando este seu périplo à volta do mundo num verdadeiro concerto de encontros culturais e de reversos reencontros com a sua própria identidade matricial. É a grande viagem, sobre a qual nos legou um diário de inestimável interesse cultural.
No regresso a Portugal, vai continuar a trabalhar nalgumas das suas obras mais marcantes, nas quais a presença dessa abertura cultural se deduz passo a passo, mas sem nenhuma concessão ao reconhecimento literal. São dessa altura a Escola Primária do Cedro (1961) e o Convento de Gondomar (1961-71). Reencontra a arquitetura com uma naturalidade surpreendente, o espaço é a matéria prima de uma atividade cuja nobreza se situa cada vez mais na constância do quotidiano e cada vez menos na exceção da gala ocasional.
Entra finalmente para a EBAP de modo efetivo, acabam-se os anos de funções letivas por convite, sem direito a estabilidade nem remuneração. A pretexto de um concurso para prof. do 1º. grupo, vai escrever e publicar um dos trabalhos de fundo da sua vasta produção teórica, Da Organização do Espaço. Nele se reveem alguns dos muitos ensinamentos que a grande viagem lhe trouxe. Encontra uma escola em permanente desassossego, na luta por um ensino mais integrado e mais dedicado à disciplina.
Vai lutar por um ensino menos analítico, mais centrado nas matérias específicas da disciplina, por um lado, e mais atento à condição social e cultural do país, por outro. Dá-se então início a um período pedagógico em regime experimental, que ficou conhecido como a Experiência e que foi fundamental para o que se veio a passar de seguida.
Quando chega Abril de 1974, e se pensa e repensa um futuro que já não era possível adiar por mais tempo, a EBAP lança as Bases Gerais para uma estratégia de futuro, agora de modo mais livre e autónomo. Todo o plano se vai centrar na pedagogia da arquitetura e no reforço da convergência dos seus contributos teóricos. Távora tem, nesse desígnio, um papel estruturante e nivelador, que lhe é consensualmente reconhecido por toda a escola.
Seguem-se tempos de convulsão no país, a liberdade conquista-se palmo a palmo e a democracia nasce, instala-se e aprende-se nos mais insuspeitos lugares, antes desprezados e esconjurados pela autoritária esfera política. O Movimento de Moradores do Porto luta por melhores condições habitacionais e urbanas e tem na renovada escola de arquitetura da sua cidade um aliado estrategicamente empenhado. O SAAL-Norte, frente local de um serviço emanado do Fundo de Fomento da Habitação para apoiar e dar suporte técnico às populações que se encontravam alojadas em condições precárias, encontrou esse apoio, de forma metódica e coordenada, nos arquitetos professores da Escola de Belas Artes e, em certa medida, na própria escola como instituição.
Fernando Távora coordena os projetos SAAL de Miragaia, no centro do Porto, e da Prelada, na altura na periferia. Acompanha todo este processo com uma presença sabiamente alinhada, não tutelar, mas sempre disponível, e consensualmente aceite como firme referência de consolidação disciplinar e caracterial dos espaços em transformação, ora no plano estrutural e construtivo, ora no plano urbano, ora no do respeito pela soberania das permanências da cidade.
Os anos 80 são os anos de reajustamento social e institucional de um país que procurava uma rota de convergência com a Europa. A democracia formal substitui a democracia orgânica, as instituições ajustam-se ao novo status constitucional. A Universidade Portuguesa democratiza-se, amplia e diversifica o seu leque de ação, quer no plano geográfico, quer no plano das áreas do saber. A arquitetura, como matéria científica e cultural, também já não cabia só no quadro das atividades de aprendizagem meramente técnica. Távora vinha-o afirmando desde o fim da década de 60.
Com a autonomia disciplinar garantida, o ensino da arquitetura parte para a aventura da entrada na Universidade. Forma-se a Comissão Instaladora da Faculdade de Arquitetura da Un. do Porto, em 1982. Em 1989, forma-se a Comissão Instaladora do Curso de Arquitetura da Un. de Coimbra. A Un. do Minho, por sua vez, inicia o ensino da Arquitctura em 1997. Fernando Távora está presente em todas estas iniciativas universitárias, o seu pensamento está inscrito no código genético das três instituições.
Dá entrada no claustro da Un. de Coimbra, como doutor honoris causa, em 27 de junho de 1993. Com ele, é a própria cultura arquitectónica portuguesa, e o modo integral, holístico e orgânico como ele a vinha entendendo, que dá entrada na Universidade.
Desses tempos, deixa-nos as obras de Guimarães, a sistematização do centro urbano (1985-1993), a Pousada de Santa Marinha da Costa (1972-1989) e a Escola de Arquitetura da Un. do Minho (1996-2002); o Anfiteatro da Faculdade de Direito da Un. de Coimbra (1993-1995), a Praça 8 de Maio, também em Coimbra (1993), e a Recuperação dos Antigos Paços do Concelho, no Porto (1993-2003).
Característica da obra de FT é, sem dúvida, a semelhante atitude que presidiu à sua conceção, como ele próprio referiu na sua Lição das Constantes. Foi essa atitude que lhe permitiu ser simultaneamente português, portuense e universal, ser simultaneamente moderno e pós-moderno, ser khmer em Angkor Vat, ser ateniense no Parténon e veneziano em São Marcos. Permitiu-lhe criticar o Mall de Washington e deliciar-se com os Campos Elísios, percorrer os jardins de Quioto e transformar o Convento de Refóios do Lima. Bolonha, o Barredo e a Praça de Santa Maria da Oliveira, o ritual de descalçar os sapatos à entrada do hotel em Tóquio ou a corrida de touros na Monumental do México, tudo isso se integra num sistema de atenta e permanente compreensão do mundo, e do espaço, que incluía sempre paixão pelo objeto de conhecimento.
Távora procurava saber sempre mais e mais sobre tudo aquilo que o emocionava, sempre de um modo relacional, sempre intensamente, mas nunca com sofreguidão. Nulla dies sine linea era a sua forma do tempo se adequar permanentemente ao espaço, num ritmo de continuidade que não admitia outros fragmentos que não aqueles cuja coerência pudesse ser validada pelo todo. A condição contemporânea, a sua condição contemporânea, só aparentemente se conformava, a consciência histórica não lhe dava tréguas, o mundo tinha nas suas pregas demasiada cultura para se dar ao luxo de ser abúlico, ou conformista, um só segundo que fosse.
“Távora no Tempo”, sim, porque sempre relegou essa abstração a que chamamos presente para a categoria de ruído de fundo, sendo essa a sua forma de considerar o papel do espaço e da sua organização. Mas também porque a sua obra persiste e inebria-nos ao longo dos sucessivos presentes, como um ruído de fundo. Especialmente nos tempos mais recentes, onde por vezes predomina a atualidade mais incompatível. Sim, dominados que estamos por um maniqueísmo tirânico, num tempo em que frequentemente nos sentimos compelidos a virar a cara à complexidade e enveredar pelas dicotomias mais simplistas, é agora que se torna particularmente reconfortante poder evocar Fernando Távora e dizer aos estudantes — em arquitetura, o contrário também é verdade.J