Teve uma cidadela só para si, em Cascais, uma sala numa livraria (a Déjà Lu) e um “bom restaurante”. Não podia ter corrido “melhor” a residência literária que Sandro Veronesi realizou, no mês de abril, a convite da Fundação D. Luís I, e por onde já passaram Jonathan Coe, Michael Cunningham e Javier Cercas. O escritor italiano aproveitou para organizar as primeiras do seu próximo romance e para acompanhar o lançamento de O Colibri, ficção de 2019 que lhe valeu o segundo Prémio Strega, antes atribuído ao seu Caos Calmo, adaptado com grande êxito ao cinema por Nanni Moretti. Um tempo de isolamento para Sandro Veronesi, nascido em Florença, em 1959, continuar a confiar em si.
Jornal de Letras: Qual foi o ponto de partida deste romance?
Sandro Veronesi: Era uma história que me acompanhava há muito tempo. E lembro-me bem de uma série de decisões — algumas corajosas — que tomei quando percebi que havia chegado o momento de a contar. Como apagar qualquer traço de cronologia, isto é, de começar no passado e seguir a sucessão de factos e acontecimentos. A seta do tempo teria de ser totalmente desfeita, até porque sabia que a história que queria contar estava cheia de tristeza e luto. Uma dimensão que faz de qualquer perda um processo tão doloroso é justamente a impossibilidade de voltar atrás. Mas num romance tudo é possível. Prefiro um leitor meio perdido, mas mais próximo do sentir e das recordações do protagonista.
Que outras decisões tomou?
Avançar de capítulo em capítulo consoante o que a minha vontade de me dizia naquele momento. Era certo que iria recordar uma vida inteira, a de um homem desde a sua infância até à morte, mas nada decidido por antecipação, ao contrário de outros romances meus. Usar na escrita os mecanismos da memória, que tantas vezes funcionam por associação, mais do que por ordem cronológica. Todas estas decisões foram muito orgânicas.
Um romance de total liberdade?
Não sei se é liberdade, talvez confiar mais em mim. Neste processo, lembrei-me até de uma passagem da Bíblia, no evangelho de S. Marcos, quando Cristo aconselha-o a não pensar no que dirá n‘O dia que mais espera. Na altura saberá o que dizer, será inspirado (pelo Espírito Santo, claro). É um bom conselho. De confiar em nós próprios. Se hoje continuo a fazer alguns planos e a pensar na estrutura, a partir de O Colibri tudo é depois desmantelado. Escrevo o primeiro capítulo e depois sigo por aí fora.
O primeiro capítulo de O Colibri está cheio de símbolos a envolver a personagem principal. Semeou para colher mais tarde?
Sim, claro, estava a facilitar os próximos passos, quer nos avanços, quer nos recuos. Mas, na verdade, as civilizações ocidentais talvez tenham perdido a capacidade de reconhecer os símbolos de um romance. Aliás, na raiz grega, tudo era simbólico, os factos eram meros veículos para os apresentar. Hoje, é ao contrário, há uma esmagadora presença de factos, de peripécias, e mesmo que os símbolos estejam lá o leitor não os reconhece. O nosso enquadramento mental não os valoriza. Ter um médico oftalmologista que não vê o seu passado como protagonista é um símbolo muito óbvio, mas há muito outros.
Estaremos a passar pouco tempo com um livro, um filme, uma série?
Sim, consumimos constantemente, a querer mais e mais. Passamos por florestas de símbolos com o olhar apenas no desfecho do enredo, perdendo a oportunidade de saborear toda a carga simbólica.
Ao contar a história de um homem quis também retratar uma época da História italiana?
Nunca tive essa intenção. Mas as décadas de 50 e 60, quando se inicia a viagem do protagonista, foram muito importantes para Itália, anos em que verdadeiramente se assumiu como país. E isso deveu-se em parte ao surgimento de uma classe média com boa formação e vários interesses culturais, que, no fundo, podia ter uma boa vida. Nesta época, todas as divisões entre norte e sul estavam acantonadas na velha aristocracia ou nos mais pobres. A esta classe média se deve a surgimento da moderna e poderosa Itália. Quis fixar uma família dessa classe, em Florença, uma família infeliz, como sugere o mandamento de Tolstói. É uma infelicidade moderna porque também nessas décadas houve uma revolução nas relações pessoais, com a renovação dos papéis. É nesta tensão entre a modernidade e tradição que Marco Carrera vive.