“A escrita é um cão a ganir à porta que se abre/ para lhe dar mimos, o agasalha à lareira com/ um osso farto e tanto o escorraça, mesmo se é/ noite e uma carnificina de neve lhe imobiliza/ as mandíbulas.” (p.9). Assim começa este livro de Rosa Alice Branco, colocando a sua poesia sob o signo de certo bestiário (neste caso o cão), naquilo que pode ser lido como uma das mais recentes constantes da poesia portuguesa atual, a saber: a que explora, a partir do simbolismo animal, a partir do que os animais dizem na poesia, os sentidos da própria escrita do poema.
Da pantera de Rilke à salamandra de Octavio Paz, do Corvo de Poe às serpentes de Morrison, do tigre de Blake à figuração do poeta como felino, ou observador da História (as aves em Costafreda, por exemplo, ou o cavalo em Ramos Rosa, esse de O Ciclo do Cavalo, em que a imagem equestre serve para dizer de uma poesia erótica, tempestuosa, insinuante e a querer ser móbil de uma revolução na forma de olhar), uma tradição inteira se vai construindo em torno dos animais, ou de certos animais que carregam consigo certo simbolismo propício da investigações sobre o ser e a linguagem. Que o tema da poesia e da linguagem, da escrita ou das escritas várias de que se faz a poesia, é facto óbvio ao ler estes poemas, eis o que não sofre contestação. Mas há um dado novo neste seu livro, o qual convém descortinar.
Revelada em 1988, Rosa Alice Branco oferece-nos neste seu novo livro uma das mais instigantes visões sobre a poesia a partir daquilo mesmo que a parece negar, ou, quando não, legitimar: a ingénua e terrível, a sumptuosa e humilde relação entre o animal e a redação. Amor Cão é um título feliz, um achado de linguagem extremamente produtivo, porque, partindo das investigações do zoólogo Kinrado Lorenz, se construiu um conjunto de poemas que glosa um tema de sempre da poesia: o amor, mas agora visto sob o enfoque do cão, isto é, da fidelidade que o cão tem pelo animal humano, talvez a forma mais dadivosa de amor, porque nada a esperar (e o cão nada espera) desse bicho da terra vil e pequeno que é o animal Homem.
Rosa Alice Branco articula, pois, dois conceitos: amor e crueldade, a que as epígrafes de Lorenz — sempre essas epígrafes e não outras — emprestam a atmosfera propícia à meditação. Rosa Alice Branco não esconde o seu interesse pela etologia (o comportamento animal), na comparação que possa estabelecer-se com o comportamento humano. Se é certo que para haver poesia não bastam ideias, creio que uma das chaves para a grande poesia de Rosa Alice Branco reside precisamente em assumir que, por detrás de certa retórica, de certa experiência do verso longo e do prosaísmo, o que lhe importa é/ são a(s) ideia(s), numa espécie de inversão de programa de muita da poesia moderna.
Assim, a ideia de predação é que instiga a redação do livro: uma escrita depredatória, voraz, que explicitamente se reflete no verso longo, em certo poder associativo de imagens: “O cão a caminho das palavras duras de roer”, escreve Rosa Alice. Numerados, num total de 44 poemas (como simbólica numerologia?), poemas há que reúnem essa ideia da depredação com aquilo que me parece ser uma forma esfuziante de se trabalhar a sintaxe e as imagens.
No poema 36, depois de mais uma epígrafe de Lorenz onde se fala do olhar que entre si trocam os animais em casos-limite, há versos depredatórios, movidos por uma força elocutória assaz rara: “Um olhar instantâneo a que respondo com/ um relance periférico fez-me acreditar no amor/ à primeira vista. Mesmo de revés olhas-me/ como se eu fosse a primeira água, a origem/ da sede e no entanto não te atreves a bebê-la/ com medo que eu seja finita. Aprendemos/ que não há fontes e qualquer jorro é espúrio/ mas ninguém gere a sede do mesmo modo.” (p.58). Uma certa atmosfera ramos-rosiana percorre a poesia de Rosa Alice, ainda que a sobrecarga de metáforas que encontramos no poeta de Volante Verde não possa verificar-se aqui.
Mas, na verdade, Rosa Alice subverte esssa carga metáforica, ou melhor, altera os regimes do seu funcionamento e em vez de tornar transfiguradora a sua mensagem, chega mesmo, em poemas de desenho à Ramos Rosa ou à Nuno Júdice (compactos, narrativos, de verso extenso), literalizar o conteúdo. Caso exemplar, entre outros, é o poema 38, onde essa literal expressão da vida quotidiana, com seus animais caninos e domésticos, se exprime com uma melancolia difícil de igualar: “Nunca sei se hei-de abrir o portão quando me ladra/a canzoada. E se mudo e quedo, o cão tem dentes afiados/ por detrás da dissimulação. Posso estar a extrapolar da gente/ que conheço ou leio nos jornais, a vedação das sebes/ e das páginas escondem um semáforo o amarelo intermitente/ e nunca sabemos se vira para o verde ou a violência.” (p.62).
Nestes versos, na verdade, vemos a transposição do literal para o metafórico, do literal para o alusivo: o sujeito desconfia das ações a tomar (se há de abrir o portão quando ladram os cães), se deve permanecer quieto e calado perante o cão que, de dentes afiados, dissimula.
A referência a Proust desmonta, porém, o efeito, a intenção do texto: contrafação (“um Proust made in China”), falsidade, efeito fictício, ecos de Ruy Belo ou de Elias Kazan, o que importa neste livro de Rosa Alice Branco é, no fundo, a alegoria: o cão, vemo-lo nós como o poema: poema que se afasta ou se aproxima, que se torce ou ruge, que invade a morada ou se mantém equidistante. Uns versos comprovam-me: “O cão corre para o fundo do quintal. Entretém/-se neste restaurante improvisado de Domingo […]” (p.63), pois que, tal como Deus não previu os laços de amizade entre o Homem e o cão, igualmente não terá previsto os laços entre o Homem e a o Poema.
Neste particular, Rosa Alice Branco reafirma, com olhar alegorista, a supremacia das imagens, do “como diz” do texto poético, mesmo quando parece ser de cães que se trata. Não é. Ou melhor: não é o amor-cão, a fidelidade canina que está em causa, mas outra fidelidade: essa fidelidade à visão, às imagens (ou a uma só imagem) que motivam esse ato falhado que é a escrita.
Poderíamos recuperar um dos mais esplendorosos versos deste livro e dizer, com Rosa Alice, quanto a fidelidade do cão ao Homem é similar à fidelidade do poeta ao reino das palavras: “Os laços de sangue são muito fortes quando se tem/ a chave da casa, a atenuante da droga, do álcool,/ do metal, ou só a crueldade psicopata.” (p.67). Tal equivale a dizer que o poema, como um cão que fareja, encontra em tudo motivo para existir e ser “amor-cão”, isto é, ato devorador de se ler um livro como quem é devorado, ou dedilha o livro, ou faz da leitura um cerimonial: “Se Lorenza dá sentido aos sons/ que imitam o verso, é porque o sigo como cão lupino, predador e animal vagabundo a uivar à sua porta/ o acolhimento feroz da escrita” (p.71).