Dizia Álvaro de Campos que o “binómio de newton é tão belo como a vénus de milo”. No seu segundo livro, Raquel Gaspar Silva, que nasceu em Évora, em 1981, sugere que a pedra é mais bela que o pássaro. E logo no título se afirma um universo que funde o que é natural e o que é humano, o que vem da razão e o que brota do instinto, o que se sabe e o que se teme. Contos nascidos de uma proximidade maior com a natureza, agora em Azeitão, onde vive, e que a pandemia só veio intensificar.
Jornal de Letras: Na altura do lançamento do seu romance, dizia que as histórias da infância e das suas avós ainda tinham muito para explorar. Regressou a esse universo?
Raquel Gaspar Silva: Sim e não. Talvez se possa dizer que os dois livros nasceram de uma inquietação comum: sentir que se pertence a algum lado. No caso do meu primeiro romance, era o território da infância, querer repensá-lo depois de muitos anos fora e registar. Neste caso, as inquietações são indissociáveis da pandemia que atravessámos.
Em que sentido?
Vivo numa zona muito bonita, de muita natureza. Esta proximidade foi um escape para essa catástrofe. A cosmovisão da natureza é essencial para o entendimento do ser humano, mas ela está quase ausente da vida urbana. Estar na Arrábida durante a pandemia foi um privilégio e todas as referências ligadas ao mundo natural chegaram com outra força.
Se para muitos a pandemia foi um momento de parar, no seu caso foi também um momento para lançar um novo olhar à natureza?
Sim. Confesso que tive momento de muito stress, tensão e até de algum medo. E nessas alturas há a tendência para nos agarrarmos a qualquer coisa. No meu caso, foi uma ligação ainda mais forte à natureza. As árvores permaneciam bonitas e as paisagens, lindíssimas. A Arrábida continuava maravilhosa e no entanto o mundo estava a colapsar. Como se diz, a natureza floresce onde não entram as teorias. E nesse contexto tão extremo, ver outras coisas e redirecionar o olhar conduziu a outros universos. Quando procuras, encontras.
Estes contos são então o resultado dessa experiência?
À falta de ver pessoas e de observar demasiado a natureza, queria encontrar outras provas de vidas. Este universo com um pé no humano e outro no animal surgiu naturalmente, dessa convivência diária, dessa interrogação. Claro que também foram muito influenciados pelas leituras que fiz na altura, nomeadamente de alguns poetas filósofos da nossa literatura. Frei Agostinho da Cruz, que foi um anacoreta na Arrábida, ou o Guerra Junqueiro, que consegue dramatizar a vida numa gota de orvalho em poemas lindíssimos.
Estes contos também remetem para o mundo do maravilhoso e do fantástico…
… porque eu acredito profundamente no folclore. Acredito que há pessoas que têm experiências tão intensas que são quase indescritíveis e que depois se transformam em tradições, lendas e crenças populares. Em histórias, no fundo. As minhas personagens sofrem essa influência do meio natural.
É o seu primeiro livro de contos. Gosta da forma breve?
Por um lado, tinha muitas histórias para contar. E, por outro, ainda não me consigo demorar muito tempo num livro. Senti que era cedo para escrever outro romance. Quero aprender mais. O conto a permitiu-me a concentração em pequenos enredos e trabalhar todas as informações que cada um convocava.
Como podemos ler este título, a pedra é mais bela que o pássaro?
O livro tem uma coerência muito grande porque os contos nasceram todos do mesmo contexto, da mesma inquietação. E nos títulos de cada conto quis dar logo dois tipos de pensamento, um natural e outro mais próximo do mundo. Embora menosprezada, a pedra é um elemento primordial. Só não a achamos bela porque não conseguimos olhar para ela. Convocar uma pedra obriga-nos a tentar perceber o que esconde, onde reside a sua beleza.