Em princípio, cada um deve comemorar como entender. Não obstante, foi aventada a ideia de que se devem comemorar as datas que unem e não as que dividem, ou seja, conforme o grau de fratura ou de coligação social. Segundo este critério, a Revolução Francesa não deveria ser comemorada. Ela foi altamente fraturante: entre as classes populares e nobiliárquicas, o republicanismo e a monarquia e entre o terror e a justiça revolucionária, pretensamente democrática.
Aquele tempo vivido em Portugal – o PREC – polarizou as fações políticas ideologicamente afastadas, criando um clima social e político que levou algumas pessoas a tomarem atitudes influenciadas pelas circunstâncias, que também não tinham nada a ver nem com o seu passado nem com o que pensam hoje. É o problema que Sartre tratou à exaustão, do homem determinado pelas circunstâncias.
O 25 de Abril e o 25 de Novembro foram datas importantes porque alteraram significativamente o curso dos acontecimentos políticos no país. Ambas marcaram vidas, prenderam e exilaram pessoas, mudaram a estagnação ditatorial, primeiro, para diversas direções políticas, depois. E o 25 de Abril, ao acabar com décadas de ditadura, não poderia deixar de tumultuar uma sociedade abafada, fascizante, que se iniciava na pouco exercida experiência “do que fazer com a Liberdade”.
O período que se segue ao derrube da ditadura merece uma reflexão ainda não terminada, nem intelectiva nem emocionalmente, em especial por ter desencadeado uma aceleração política no processo social, no sentido de uma extrema esquerda, de inspiração marxista e leninista. Natural era que surgissem reações de contestação, pois, um povo católico e conservador, maioritariamente servil a uma das mais longas ditaduras europeias de direita fascista, não deixava de o ser de um dia para o outro. Assim, uns pretenderão esquecer em vez de comemorar, outros comemorar e recordar. Porém, uns e outros não devem cometer o erro histórico, clamoroso, cometido por um dos mais laureados historiadores do século XX – Martin Gilbert. Por considerar que a segunda metade do século foi marcada pela Guerra Fria, o que não é incorreto, quando se refere a Portugal quase não fala do 25 de Abril e fala muito mais do 25 de Novembro. Na primeira data, Gilbert vê um conflito entre uma ditadura desculpada pelo bloco ocidental, antissoviético, e a Democracia. Em 25 de Novembro, vê uma disputa de protagonismo entre as fações demoliberais e as de inspiração marxista e leninista – o que era mais importante, para a visão dele e não era insignificante para a visão de muitos, inclusive a minha, dadas as convicções próprias e os trabalhos que tive no próprio dia, inerentes ao cargo que desempenhava na altura, de presidente da RTP.
Socialmente, o 25 de Novembro acabou com o então conhecido ator cómico Danny Kaye a surgir no ecrã. Como moral da história, podemos acreditar que se a historiografia e as convicções políticas se misturam, tal nem sempre é bom para a Política, mas é sempre mau para a História. O chamado distanciamento histórico não deve constituir apenas uma questão de método para o historiador, mas também um tempo que ajude à compreensão do que o cidadão comum viveu: compreensão inspirada na compreensão do Outro, principalmente quando a vivência se verificou numa mesma comunidade contemporânea.
O conhecimento das outras opiniões enriquece a nossa, dá-lhe relativismo, fortalece a convicção e tem a vantagem de esbater o azedume entre opiniões distintas, quando não o ódio entre os titulares. Exprimem-se, e também se calam, opiniões e julgamentos sobre o estado do país com os quase 50 anos de vida em democracia. Avaliações que são feitas com honestidade e oscilam entre dois entendimentos e dois sentimentos: a triste deceção e a regozija esperança, no pouco ou muito que se fez e no que falta e é urgente fazer.
A democracia é isso mesmo, um entendimento sobre objetivos políticos e sociais e um sentimento existencial determinante de adesões pessoais ao modo de vida comunitário. A democracia constitui um processo inacabado, em permanente evolução, que nunca se sente acima da ideia que ela faz de si mesma. Não há democracias perfeitas (nunca houve, desde a Grécia Antiga), vamos melhorá-la o mais possível e a modesta forma que pessoalmente agora tenho mais à mão é comemorá-la. No 25 de Abril, claro!