Devia haver um prémio especial para aqueles livros que esmagam o leitor qualquer que seja o número de páginas percorrido. Lido até ao fim, uma quimera. Lido até meio, um sonho. Aberto ao acaso, uma surpresa. Lida a primeira frase, um deslumbre. Claro que também estou a pensar na Guerra e Paz, de Tolstói, romance e título tão ajustados a todas as épocas que somos dados a viver. E já lá irei. Na verdade, tenho na cabeça outra obra, agora lançada em Portugal pelas Edições 70: O Tempo dos Mágicos, do alemão Wolfram Eilenberger. Trata-se de uma biografia filosófica, ou de uma filosofia em quatro biografias, que retrata a década que vai de1919, no pós – I Guerra Mundial, até 1929, quando uma 5ª feira negra em Nova Iorque nos mostrou como há muito o mundo se globalizou, em sucessivas interdependências.
Walter Benjamim, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein e Ernst Cassirer: naqueles dez anos afirmaram-se quatro nomes que protagonizaram uma autêntica revolução filosófica. Absurdamente interessante, o livro vale tanto pelo todo — uma viagem admirável pelas vidas e obras de verdadeiros génios, nas suas virtudes e nos seus defeitos — como por cada e qualquer parte. Cheio de histórias e episódios, de corredores universitários e densas florestas, de cartas trocadas e embates travados, prende-nos desde a primeira linha. Literalmente. Abrimos o livro, que dispensa introduções e conclusões, e lemos: “Não se preocupem, sei que nunca vão entender”. Lemos e sorrimos porque não se trata do autor, também filósofo, a alertar o incauto leitor, mas do próprio Wittgenstein a prevenir os arguentes da sua tese de doutoramento.
Lemos e sorrimos ao pensar na cara (e na fúria) de Bertrand Russell e George Edward Moore, duas referências na filosofia do século XX. O sapo que então engoliram só se tornou digerível porque o tempo acabou por dar razão ao filósofo austríaco, naturalizado inglês, autor de um colosso de pensamento que ainda hoje tentamos interpretar.
Wittgenstein era, aliás, homem propenso a belos combates de palavras. O que acabámos de descrever, que não deixa de configurar uma intensa querela, ocorreu em 1929, uma década após ter abandonado a filosofia na ressaca da participação na I Grande Guerra e de uma certa saturação intelectual. E mesmo nessa altura, quando se decidiu pelo ensino primário, não faltaram pais, mães e outros encarregados de educação a protestar contra os seus métodos austeros, rigorosos e inapropriados. Mais vistoso e engraçado foi o conflito que o opôs, em 1946, na sequência de nova guerra mundial, a Karl Popper, também austríaco e naturalizado inglês, outro grande nome da filosofia do século XX.
O episódio é bem conhecido e integra qualquer relato biográfico que se preze. É reconstituído, no detalhe possível, já que subsistem versões contraditórias, por David Edmonds e John Eidinow noutro livro que também merecia aquele prémio que proponho no início deste texto: O Atiçador de Wittgenstein. Neste caso, não é a primeira linha que nos agarra, mas a epígrafe: “Sei que sucedem coisas estranhas neste mundo. Foi uma das poucas coisas que verdadeiramente aprendi na minha vida”, afirmou, em tempos, o autor do Tractatus Logico-Philosophicus.
Karl Popper visitava o Clube de Ciência Moral de Cambridge, que se reunia na sala n.º 3 da escadaria H do King’s College, como orador convidado. Estávamos a 25 de outubro, noite de sexta-feira. O tempo arrefecera e a lareira, obrigatória em qualquer instituição inglesa, fora acendida. Era a primeira vez que Popper e Wittgenstein se encontravam juntos e ao vivo na mesma sala, e o encontro só podia acabar mal. Representavam visões distintas da filosofia, o primeiro defendendo a existência de problemas filosóficos, o segundo reduzindo-os à categoria de enigmas. No calor da discussão, diz-se que Wittgenstein pegou no atiçador da lareira e o apontou, em riste, qual lança, a Popper.
Mais do que uma luta, foi uma guerra de palavras. A montante, duas linhas paralelas de pensamento. A jusante, a impossibilidade de as conciliar. Hoje, quando voltamos a lidar com uma guerra na Europa, somos novamente confrontados com o poder das palavras atiçadas. Saramago sempre nos lembrou: “As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam.” Neste tempo de infâmia, cabe-nos escolher que palavras nos representam. Sem querer resolver a parangona de 1946, que evoluiu para diferentes escolas filosóficas, a atenção de Wittgenstein à linguagem e à sua relação com o que nomeia parece-me cada vez mais imperiosa num mundo que se desdobra em tempo real.
Tudo o que dizemos pode derrotar-nos, pode salvar-nos. E não se trata apenas da famosa lição que o musculado Ájax aprendeu na disputa com o astuto Ulisses, que o venceu pela força das palavras. “Eu valho na linha de batalha da feroz guerra, tanto quanto ele é valoroso em eloquência”, reconhece o segundo maior guerreiro grego, a seguir a Aquiles, no relato que Ovídio faz nas Metamorfoses. Ulisses, por seu turno, responde-lhe: “Tu tens força sem engenho, eu preocupo-me com o futuro”. A lição que hoje também temos de interiorizar é que as palavras deixaram de ser um relato do que se passou ou um anúncio de intenções para galvanizar tropas e identidades. As palavras, especialmente as atiçadas, são parte da ação cada vez mais vertiginosa da realidade em que vivemos. No mundo on-line, tudo é feito de palavras, até as que usamos para legendar uma imagem.
Por falar em atenção à linguagem e à forma como ela nomeia o real, é um verdadeiro enigma wittgensteiniano a reação do PCP à invasão da Ucrânia pela Rússia, que espanta não só pelo fraseado dos comunicados oficiais, mas também pelas ligeiras diferenças nas intervenções televisivas de alguns dos seus militantes, que se esquecem que tudo são palavras, mais atiçadas umas, mais brandas outras, umas constantemente lançadas ao agredido, outras laconicamente enviadas ao agressor. Faz lembrar aquele conto de Gonçalo M. Tavares que nos fala de um escritor com pouco vocabulário, publicado na antologia Contos de Algibeira, da associação brasileira Casa Verde. Em vez de letras, o seu teclado tinha palavras. Quando assim acontece e não se tem oportunidade de as substituir, continuamos a atiçar a guerra, em vez de descrever a realidade. Em casos extremos, dá nisto: “Não estamos a atacar a Ucrânia”, disse, nas negociações da Turquia, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo.
Entre a guerra e a paz não pode haver dúvidas. Apenas palavras de condenação a quem invade a soberania de um país. Palavras de infinita e impotente solidariedade para quem sofre ataques brutais. E palavras que se preocupem com o futuro, em vez de repetirem erros do passado.