Vendo a oportunidade, Láios Schwarcz disse para o filho András: sai do comboio por aquela fresta. Deportados de Budapeste, estavam a caminho do campo de concentração de Bergen-Belsen. Um salvou-se, juntando-se à resistência judaica e passando passaportes falsos que ajudaram muitas vidas. O mais velho seguiu até ao seu destino fatal. Sobre este episódio caiu um muro de silêncio, o mesmo muro no qual Luiz Schwarcz, filho do segundo e neto do primeiro, viveu. Ao crescer, percebeu pelos não ditos que havia não só muitos segredos e tragédias na família, como uma incapacidade para falar. Além dos episódios dramáticos da Segunda Guerra Mundial e da perseguição nazi, havia o casamento sempre em crise dos pais, os muitos abortos espontâneos que a sua mãe teve, as constantes traições conjugais paternas e a solidão que os envolvia a todos.
Apesar de ter feito uma carreira de sucesso – primeiro na Editora Brasiliense, onde acabou diretor, mais tarde na Companhia das Letras, fundada por si e pela sua mulher Lilia Schwarcz em 1986, e que se tornaria na casa editorial mais importante e influente no Brasil, comprada pela Penguin em 2011 e na totalidade em 2018 –, a sombra da depressão esteve sempre por perto. Na sua faceta pública, era visto como um editor de sucesso. Na intimidade, tinha de lidar com os seus fantasmas e o passado nunca contado.
Essas duas vidas fundiram-se agora em O ar que me falta, um poderoso relato autobiográfico em que Luiz Schwarcz, hoje com 65 anos, se dá a conhecer por completo. Sem medo de partilhar as suas fraquezas, conta a história da sua relação sempre intensa com a depressão e vários transtornos, ao mesmo tempo que empreende uma viagem ao passado para destapar um pouco da história e do sofrimento da sua família. Um livro de partilha publicado pela sua Companhia das Letras, tanto em Portugal como no Brasil, numa altura em que o grupo a que pertence, o Penguin Random House, consolida a sua posição entre nós com a fusão com o Grupo 2020, efetivado este verão e que deu origem ao Penguin Random House Grupo Editorial Portugal.
Jornal de Letras: Diz que a depressão é o reverso do sucesso. Quis com este livro revelar-se por completo?
Luiz Schwarcz: Sim. A depressão é o lado da minha vida menos conhecido. De alguma forma, o sucesso cria uma imagem monolítica de qualquer pessoa, mas a vida é muito mais complexa do que isso. Com este livro quis mostrar que no caminho para o sucesso, ou em qualquer outro percurso, nós também vamos acumulando vulnerabilidades. Que podem ser mostradas. E que nunca desmerecem ninguém. Pode até ser um meio de compreensão e de aprofundamento da relação com outros seres humanos. Mas é pouco comum as pessoas virem a público mostrar esse outro lado. Muitas vezes guardam só para si.
Haverá ainda receio de mostrar esse outro lado? Será ainda um tabu?
É possível que ainda seja. O que nos compõe é uma mistura de coisas muito diferentes, mas o que fica da imagem pública é muito pouco. Quando comecei a pensar neste livro decidi logo que seria o mais completo possível. Muitos leitores que me são próximos, desde os editores à minha ex-psicanalista, revoltaram-se contra alguns capítulos.
Demasiada exposição?
Sim, nomeadamente no capítulo sobre os efeitos que o transtorno bipolar pode gerar numa pessoa. Diziam que eu não podia expor-me assim tanto. De alguma forma, ainda é um tabu. Não que seja o primeiro a fazê-lo, mas continua a ser muito difícil aceitar que alguém se disponha a contar aspetos dos quais não tem orgulho nenhum.
Não quis ‘maquilhar’ a sua história.
Exato. Quis ser o mais fiel possível. E tenho a certeza de que não fui, pois esse é um exercício impossível. A intenção, no entanto, está lá. Quando me colocaram algumas reservas, incluindo na editora, o que disse foi: ou sai assim ou não sai.
Pelo que diz e pelo que se lê, este parece ser um livro mais de afirmação de uma força do que de exposição de uma fragilidade. Concorda?
Dispus-me a contar as minhas fragilidades. Se isso é um ato de coragem, prefiro que seja o leitor a dizê-lo. Para mim, foi tudo muito natural. Talvez por ter feito psicanálise durante tanto tempo e por o livro ter surgido num momento tão inesperado, quando a depressão me deu um sinal muito forte.
Que sinal foi esse?
Estar numa paisagem idílica, a caminho do topo de uma montanha para esquiar, com a minha mulher e as minhas netas, e a certa altura sentir a depressão com uma força tal que não consigo entender. Foi um contraste muito grande entre o que me rodeava e o que sentia por dentro. Aí veio a iniciativa de escrever. Costumo dizer que a depressão é uma velha senhora. E ela veio, no topo do Matterhorn, e disse-me: “Luiz, não se esqueça de mim, vou fazer parte da sua vida para sempre”.
A depressão é uma surpresa para quem se vê envolvido por ela?
Quando ela surgiu, em 1999 e até em datas mais recuadas, havia motivos para aparecer. Mas hoje tenho sinais da depressão em momentos totalmente inesperados. Nada faz prever. Claro que cada caso é um caso, mas em muitos é difícil entender as suas razões. Por vezes, é possível ter um diagnóstico e perceber por que se está deprimido. Mas também há muita depressão não diagnosticada, pessoas que não se apercebem que podem ser tratadas. É terrível, sobretudo porque os serviços de saúde necessários nem sempre estão disponíveis nesta área, nomeadamente no Brasil.
Este livro sai numa época em que a saúde mental está na ordem do dia, fruto da pandemia e dos vários confinamentos. Houve aqui alguma relação?
Comecei a escrever este livro pouco antes da pandemia. Os confinamentos acabaram por me ajudar a ter o tempo e a concentração para o escrever. Estava nos Estados Unidos, em Princeton, onde a minha mulher dá aulas. Passamos aí todo o mês de fevereiro e depois seguimos para a Feira do Livro de Londres, em março. Como o episódio de esqui tinha acontecido em janeiro, a pandemia apanhou-me já a escrever qualquer coisa. E com a notícia do cancelamento da Feira decidi não fazer mais nada. Por norma, em Londres, um editor trabalha 14 ou 16 horas por dia. Fechado em casa, eu escrevi 18 horas diárias, sem atender chamadas do Brasil (o que nesta altura do ano já costumava acontecer por causa das reuniões na feira). Avancei na primeira versão de muitos capítulos.
Mas sentiu que o seu livro ainda fazia mais sentido ao ser publicado neste momento, com tantos desafios lançados à saúde mental das pessoas?
Uma coincidência. Para falar verdade, a minha principal preocupação foi o título. O ar que me falta podia confundir-se com os sintomas da Covid-19 e vir a ser acusado de oportunista, do que duas ou três pessoas acabaram por me acusar nas redes sociais. Mas o título era muito anterior e o que fazia mais sentido.
Ao longo do livro procura a raiz da sua depressão, o que o levou à história da sua família e à II Guerra Mundial, ao seu pai que, ao contrário do seu avô, conseguiu escapar de um comboio a caminho de um campo de concentração…
A minha ex-psicanalista, de quem hoje sou muito amigo, já me tinha dado alta, mas na verdade senti que este livro foi um novo ciclo de análise ao retomar toda esta história. Tive, de facto, de voltar a entender-me através do meu discurso. Mas neste caso senti necessidade de ouvir outras pessoas, porque para perceber a história da minha família as fontes eram reduzidas. Algumas memórias e nada mais. O meu pai quase que não comentava do seu passado. Cheguei à fala com o meu tio e muitos acontecimentos recentes fizeram com que a minha mãe também recordasse vários episódios que nunca antes havia referido. De alguma forma, fui buscar verdades que não estavam dentro de mim, rompendo o muro de silêncio em que cresci. E esse não dito foi muito doloroso.

São publicados cada vez mais relatos sobre a Segunda Guerra Mundial. Eles são importantes para compreender o passado?
Muito. Duas dimensões são importantes: as estatísticas e os relatos. Cada uma mostra-nos a dimensão da Segunda Guerra Mundial e a forma como marcou a vida de milhões de pessoas, para lá das que morreram. No processo da escrita de um romance que nunca acabei, O luar ausente, investiguei muito sobre Budapeste em 1944, onde vivia a minha família. Descobri um livro de uma professora americana que conta como foi separada dos pais e salva por um judeu vestido de nazi que andava a distribuir passaportes com vistos. Sei que o meu pai também fez isso. Imaginá-lo a salvar aquela pessoa em concreto, embora nunca o possa vir a confirmar, é uma imagem muito forte. Esta sensação só se consegue ter através do relato do Outro.
Conta neste livro o abandono desse romance. Qual a sua relação com a ficção?
Está presente em algumas passagens deste livro, quando tento perceber o que fazer quando não há fontes e ensaio alguma hipótese, ou quando descrevo a minha viagem a Budapeste e vejo a casa da minha família. No entanto, ainda não me encontrei com o registo ficcional. Escrevi alguns contos que foram elogiados, mas pouco mais. Estou agora a escrever um livro sobre edição.
Pela sua experiência, será certamente aguardado com muita expectativa…
Talvez… Decidi escrevê-lo a partir de cartas. Imaginei uma jovem que queria abrir uma editora e com quem troco correspondência. Além das cartas que lhe escrevo, há também cartas dirigidas a pessoas muito importantes no meu percurso de editor que já morreram. Escrevi duas cartas à rapariga e outras tantas ao meu primeiro chefe. Para o diálogo continuar percebi que tinha de saber o que essa jovem me responderia. Comecei, por isso, a flirtar com a ficção. Como é que virou editora? Quais foram as suas primeiras leituras? Mas a minha imaginação está muito fraca. Estou a refazer tudo, transformando os capítulos sobre a jovem em ensaios, embora mantenha as cartas aos mortos, incluindo a autores que editei, como Rubem Fonseca, Susan Sontag ou Oliver Sacks.
É uma espécie de balanço do seu percurso editorial?
Um pouco, sim. Mas não quero contar a história da Companhia das Letras, dizer que começou assim e acabou por ficar muito grande. Não consigo lidar publicamente com o sucesso. Mostrar o fracasso é-me mais fácil.
A Companhia das Letras é, no entanto, uma das grandes casas editoriais da língua portuguesa e uma grande história de sucesso. O que imaginou quando a criou?
Uma editora que me permitisse viver dela, com livros de longa duração. Nada de muito grande.
Viver de uma editora com livros de longa duração já era pensar em grande…
[risos]. Acho que sabia escolher, apontando para livros que nunca seriam grandes fracassos, mesmo se nunca fossem grandes sucesso. Mas acabou por ser um pouco diferente.
Qual o segredo de uma editora de sucesso?
No tal livro que estou a escrever, tento dar algumas lições de humildade aos novos editores. Aos velhos, se ainda não a praticam, já não se vai a tempo [risos]. Uma das ideias que tento combater é a de faro editorial. O sucesso não se consegue cheirar à distância, muito menos enfiando o nariz dentro de um livro impresso [risos]. Não acredito nisso. As explicações para o sucesso nunca estão no editor.
Onde estão?
No autor e no acaso. O editor é o quarto ou quinto fator relevante.
Há editoras que tentam compensar apostas mais “difíceis” com livros tidos por mais “acessíveis”. A coerência de um projeto editorial é importante?
Quando comecei, as editoras de facto publicavam livros comerciais para pagar os livros de qualidade. Tentei sempre que isso não fosse necessário, nem obrigatório. Acredito que dá para escolher livros de qualidade e capazes de ter uma aceitação suficiente para garantir a existência de uma editora.
Neste seu livro também conta alguns episódios, como o primeiro leilão internacional de um autor da Companhia das Letras: pagaram muito por um romance que não correspondeu às expectativas. A edição é um mundo estranho?
A vida de um editor tem mecanismos muito bonitos e outros muitos perversos. Leiloar um livro, por exemplo, ou a hipótese de comprar uma obra antes de a poder ler. Nos meus primeiros anos de edição, não havia nada disso. Hoje, é muito comum.
A Companhia das Letras está presente no Brasil e mais recentemente em Portugal. Mas essa ponte atlântica, entre autores, não parece ser fácil de manter. Porquê?
É difícil de entender, e os obstáculos vêm dos dois lados. Mas em algum momento vamos ter de quebrar esse paradigma. Na nossa perspetiva, o José Saramago e o Mia Couto são aproximadores de mundos. Do Brasil é que não tem surgido nenhum autor que cumpra esse papel. Há algumas exceções. O Chico Buarque vende bem em Portugal. E o livro Arrancados da Terra, da Lira Neto, sobre os judeus sefarditas que saíram de Portugal e acabaram no Brasil e depois em Nova Iorque, também tem corrido bem. Estou tranquilo: um livro sobre a depressão de um editor brasileiro terá uma vida discreta aqui [risos].
Começou em duas salas emprestadas e hoje integra um dos maiores grupos editoriais do mundo, também muito forte em Portugal. Como vê estas concentrações?
É curioso que a Penguin Random House, uma editora que tem investido num mundo global, tenha uma política de autonomia dos seus núcleos nacionais, com um respeito grande. No lado brasileiro, nada foi afetado. Pelo contrário, ajudou-nos muito na transferência de tecnologia, nomeadamente no campo do marketing on-line, hoje considerado essencial. Fazemos parte de uma empresa multinacional, mas ver nisso uma questão negativa ou perversa é querer lutar contra a história.
Para fazer face a grandes empresas do audiovisual, como a Netflix ou a HBO, é preciso ter também grandes grupos editoriais?
Todas as multinacionais precisam do local. A Netflix, das histórias nacionais. A Amazon, dos livros de sucesso local. A promiscuidade entre o nacional e o internacional é positiva. Mas sou parcial, pois tenho uma boa experiência.
