Notável entre os romances notáveis de Valter Hugo Mãe (VHM) (A desumanização, O filho de mil homens, A máquina de fazer espanhóis), As doenças do Brasil é um romance extraordinário, que capta o sentir poético e mítico dos Abaetés (povo nativo do Brasil), transpondo-o em forma de narrativa (cf. “Um outro Brasil”, entrevista ao autor por Luís Ricardo Duarte, JL, nº 1339, 22/9/21).
As doenças do Brasil acrescenta às diversas doenças europeias que os brancos levaram para o Brasil (bexigas, gripe, varíola, sarampo…), que exterminaram centenas de milhares de índios, aquela de que pouco se fala na narrativa portuguesa sobre esse país, mas que se revelou a mais mortífera: a racionalidade do branco, os seus comportamentos europeus, o seu obsessivo proselitismo cristão e a ganância do lucro extraído do trabalho alheio nas plantações de cana.
Se as tribos primitivas que viviam na mata foram objeto desta razia civilizacional, o europeu acrescentou ao território uma nova e estranha doença: a escravatura do negro (cerca de 12 milhões de negros foram violentamente forçados a transplantar-se da África para as Américas entre os séculos XVI e XIX, sugando a vitalidade do continente negro, povoando o novo mundo e enriquecendo a Europa). É deste conjunto de doenças que, como um subtexto não aflorado, mas sempre presente, o romance de VHM trata.
E podia tratá-lo ao modo do romance histórico ou num ensaio reflexivo e denunciador. Mas preferiu dar ao leitor a visão mítica (e, enquanto mítica, poética) dos Abaeté, seja no nome das personagens, seja nos seus costumes comunitários, seja na sua visão do mundo. Para isso, compôs um romance escrito num cruzamento de sintaxe tupi e portuguesa, ou, melhor, enxerta na língua portuguesa atual a mundivisão tupi. O leitor deve previamente compreender este cruzamento linguístico estranho, gerador de uma narrativa estranha, que por vezes lhe desorientará a leitura.
A maioria das qualificações só é entendível no âmbito de uma cosmovisão tupi: 1) a fusão do homem com a natureza; 2) a conceção de que tudo está vivo e que, entre os vivos, são possíveis todas as metamorfoses (homem/animal/planta); 3) a existência omnipresente de “espíritos”; 4) a comunidade não só absolutamente superior ao indivíduo como lhe determinando todos os comportamentos. Em síntese, existe uma intensa harmonia entre o homem tupi e a natureza que, por via da incorporação das qualidades naturais na personalidade do tupi, esta harmonia transforma-se numa quase fusão.
O romance afirma-se segundo a estrutura de uma epopeia (numa prosa que rasa a poesia) de libertação de um povo submetido. Honra, nome da personagem central, intenta tanto a sua libertação pessoal como a libertação do seu povo do domínio da “fera branca”, dos brancos europeus. Honra é filho da violentação sexual de sua mãe, Boa de Espanto, por um branco. Assim, Honra, de pele esbranquiçada e cabelo acastanhado, é considerado um estranho, um “feio”, diferente dos restantes membros da comunidade. Atormentado, foge para a mata (a selva), sentia-se a odiar o mundo, era a sua parte “branca”, já que “o ódio não é abaeté. Talvez eu não seja abaeté” (p. 34).
A história de As doenças do Brasil consiste, em suma, na saga de Honra em matar o “ódio” inoculado pelo colono branco e assumir a harmonia global que sempre reinara nos Abaeté. O ódio, a perfídia, a exploração, a manipulação alheia, o fomento da divisão entre os povos, a redução de um homem à insignificância – são igualmente consequências das “doenças” que o europeu levou para o Brasil, que oprimem e dominam o espírito de Honra: “Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro da mata” (p. 33).
A reconciliação de Honra consigo mesmo atravessa epopeicamente todas as páginas do romance, desde a recusa e depois permissão de Honra cumprir os rituais de passagem de “transparente” para “complexo” (guerreiro), do afastamento das “femininas” do seu corpo, considerado “sujo”, até ao final apoteótico do encontro de Honra com o seu pai branco no além das “três ilhas” após a travessia do “animal líquido”, quando o ódio de matar se transforma em “gentileza” abaeté. Um abaeté só mata para se defender, não possui ódio, só possui fúria, cólera rompante. O branco, detentor do “ferro que cospe fogo” (arma de fogo) mata por cupidez, por ganância, por interesse e por ódio. Honra não pode tornar-se igual ao inimigo.
A Honra junta-se outro “feio”, fugido dos brancos, procurando um “mocambo” desconhecido que havia na mata. Porque era negro, é chamado pela comunidade abaeté de Meio da Noite. Igualmente “ferido”, desdignificado pelos brancos, reduzido a um instrumento de trabalho, sentiu igualmente a cobiça do europeu e junta-se a Honra na busca vitoriosa sobre o homem branco, com a esperança de atingirem “o lugar prometido que havia ainda sem inimigo (…) Uma terra livre onde o cativeiro ficasse no pesadelo passado [narrado no romance], fechado, fechando cada vez mais a favor de um tempo sem obediência nem agressão” (p. 248). Imaginaram que iriam construir um mundo novo.
Gostámos que Valter Hugo Mãe não tivesse identificado o branco com o português como povo culpado da devastação dos tupis a partir de 1500 (cf. texto da badana direita). Sim, não foi uma questão “Portugal versus Tupis”, tratou-se de uma questão civilizacional: a civilização europeia, racionalista e cristã, dotada de tecnologia superior, contra uma civilização tupi, fundada na sensibilidade mítica.