Daniel Oliveira perguntou a Miguel Sousa Tavares (MST) “o que o motivou a ser jornalista?”, e este respondeu “contar histórias” (Alta Definição, 2012, p. 9). “Contar histórias” é comum ao jornalista e ao romancista, mas não da mesma maneira. O primeiro assenta numa técnica precisa de informação, o segundo numa arte com, pelo menos, 200 anos de história e um conjunto de categorias literárias que o romancista não pode desconhecer.
Há jornalistas que transitam sem dificuldade da redação de uma notícia para um romance (exemplos recentes: Baptista-Bastos, Fernando Assis Pacheco; hoje: Sérgio Almeida – do Jornal de Notícias). O segundo confessou à revista Ler (nº 26, 1994): “São disciplinas completamente diferentes e o que me faltava para avançar com Benito Prado era um corte profundo com o léxico e com a profissão [de jornalista] – são olhares distintos”. MST tem consciência de que a escrita jornalística pode ser uma prisão. Ele o disse a Rodrigues da Silva: os jornalistas “passam a vida a escrever, mas dentro de balizas (…) A certa altura, há a tentação de escrever livremente” (JL, 21 de abril de 1999).
Se Equador, primeiro romance de MST, deu conta daquele “corte profundo” que Assis Pacheco julgava necessário para se passar do jornalismo para a ficção, é por vezes, muitas vezes, impossível encontrá-lo no romance ora publicado, Último Olhar, como se a totalidade história narrada não passasse de uma grande reportagem. Não se trata da estrutura do romance, desenhada numa dialética intercalada entre a história de vida de duas personagens, Pablo Segovia Rodriguez e draª Inez Montalbán, com uma malha narrativa bem entrançada consoante as décadas, desenhada ao modo do romance clássico. Trata-se do léxico utilizado, um léxico de grande reportagem, com precisão vocabular, predominantemente de natureza informativa, realista e histórica, que dramatiza os acontecimentos (guerra civil de Espanha, domínio da França pela Alemanha, libertação da Europa da besta nazi e da Espanha do poder ditatorial de Franco), transformando-os em tragédia, assumindo um estilo de realismo trágico.
Corre nas redes sociais que Último Olhar é um romance sem qualidade Não estamos de acordo, é um romance de qualidade se seguirmos a linha do romance realista americano (Steinbeck, Hemingway, Capote…). Recordamos que a visão negativa que se teve dos romances de Júlio Dinis no seu tempo de vida era assim classificada pelos autores e críticos que seguiam a linha do romance francês, que Eça veio depois a consolidar, desconhecendo que o autor de As Pupilas do Senhor Reitor dominava os romances ingleses (cf. Helena Carvalhão Buescu, “Júlio Dinis, Ecologia e Futuro”, in JN, 13 de setembro de 2021). Um léxico que joga com o que horroriza (campos de detenção bárbaros, morte trágica da família de Pablo) e atrai (um casamento infeliz, um amante de sonho para Inez, Paolo, médico italiano que morre a salvar doentes de COVID 19), dirigido a um leitor corrente de classe média, mas que, para ser arte, dificilmente se desprende do realismo jornalístico.
Tanto realismo, transposto diretamente, abafa este romance, confundindo-o como uma grande reportagem, inclusivamente no uso de estereótipos de classe média (a relação entre Inez e o amante Paolo e a adjetivação usada é um condensado de estereótipos). Nas palavras de Eduardo Prado Coelho, “a obra literária desenrola-se num jogo dialético entre o ‘irreal’ (a invenção) e o ‘real’ do nosso conhecimento empírico” (“Literatura e testemunho [realista]”, in Isabel Allegro de Magalhães, Literatura e Pluralidade Cultural, 2000). A Último Olhar falta o “irreal”, lição retirada igualmente dos romances do jornalista Gabriel Garcia Márquez. A arte deste romance encontra-se no desenho da estrutura, uma complexa rede de tempos (atravessa a totalidade do século XX, finalizando em 2020 em plena pandemia) e de espaços (Espanha, sul de França, Áustria, de novo sul de França, finalizando de novo no sul de Espanha), toda centrada na vida de Paolo e de Inez, congeminada, sem dúvida, a pensar no leitor comum, heterogéneo, mas não letrado, habituado a romances tradicionais.
É um romance destinado a fazer sucesso entre esta classe de leitores, que tem tanto direito a existir como o intelectual que só gosta dos romances de Rui Nunes. Entre o jornalismo e a arte, com este romance MST pode gabar-se de, com exceção de José Rodrigues dos Santos e Henrique Monteiro, mais nenhum jornalista português conseguiria escrever um romance com 308 pp. narrando a história de duas vidas singulares, concentrando nelas a história da Europa. Não é nenhuma glória olímpica, mas também não é fator a ignorar. Se o léxico fosse outro, menos jornalístico, menos conotativo…