Haverá sempre razões para ler Baudelaire (1821-1867) e recordar a sua genialidade. Nos nosso dias, será talvez a lembrança de um poeta em transição, vivendo e assinalando o fim de um tempo e a aurora de uma experiência ainda por revelar. Como ele, também nós intuímos o movimento em que estamos lançados, o valor disruptivo do que se anuncia e o que em breve poderá deixar de ser, não sendo ainda claro o que virá e o que viremos a ser. Baudelaire não é ainda o praticante de uma nova poética – modernista –, mas sim um poeta da transição, da tensão entre a prática exímia do soneto em As Flores do Mal (1861,1868) e os poemas em prosa de O Spleen de Paris (1869). O poeta que mergulha no fundo da alma, dos seus estados e paixões, mas também no tumulto da vida moderna, como num “reservatório de eletricidade” (Baudelaire) e nas cintilações fantasmagóricas de uma das primeiras grandes metrópoles, a Paris da segunda metade do século XIX. “Um poeta na Idade do Capitalismo Avançado”, dirá Walter Benjamin, um dos seus maiores intérpretes, no título dos estudos inacabados que lhe dedicou.
No génio de Baudelaire, “alimentado de melancolia”, Benjamin vê a alegoria de uma arte lírica que não encontra já lugar nem reflexão possível no olhar “alienado” da época, que se passeia pelas arcadas das grandes montras urbanas e da mercadoria. A intuição do desacerto entre a idealidade da arte e as condições da vida moderna, atravessa toda a obra de Baudelaire e fornece a Benjamin alguns dos temas maiores da sua própria interpretação da modernidade. Para além de todas as razões para lermos ou relermos a sua poesia, haverá ainda essa: a de nos encontramos com o Baudelaire de Benjamin, ou com Benjamin leitor de Baudelaire, que foi marcando tão decisivamente a nossa compreensão da modernidade, em sucessivas receções (veja-se a mais recente reedição deste projeto benjaminiano, com a direção e introdução de G. Agamben, 2012).
Sendo, com toda a certeza, um dos primeiros intérpretes do moderno, Baudelaire não é um modernista. Nessa medida, não encontramos nele o acolhimento puramente celebrativo de um novo tempo, e das suas promessas, mas a consciência aguda de uma transição e, com ela, a intuição do que está também a chegar ao seu fim: a transcendência ou o valor eterno e absoluto da arte, fim enunciado aliás, no seu próprio tempo, pela voz autorizada de Hegel. Ao contrário do sentimento que dominará, algumas décadas depois, a maior parte das vanguardas – o sentimento de que a aventura da arte só agora pode começar – a busca de Baudelaire assenta ainda numa inquietação essencial: como pode a arte persistir depois do seu fim?
Ser poeta e ser moderno implica aceitar a perda de transcendência da poesia, a sua queda no mundo, na temporalidade e na finitude. Tal não implica, no entanto, para Baudelaire, abdicar da busca da beleza, da espiritualidade e da originalidade da arte, mas sim extrai-las da atualidade, daquilo que sendo “transitório” no presente, lhe confere justamente o seu carácter único, o seu espírito próprio, embora a custo da sua efemeridade ou do espectro da sua morte.
No ensaio O Pintor da Vida Moderna (1863), originalmente publicado num jornal, Baudelaire exemplifica esta busca da beleza e da espiritualidade do presente através de uma galeria de personagens e de estilizações da vida moderna. Nele retrata, por exemplo, a busca da beleza e da “alta espiritualidade da toilette” partilhadas pelo dandismo e pelas mulheres, a luta da captura da atualidade pelo ilustrador das notícias de um jornal, e as travessias do olhar na flânerie urbana. Nesta estética mundana e prosaica do presente residiria uma espécie de sensibilidade difusa e désouvrée (“sem obra”) da vida moderna, a que o poeta e o pintor poderão dar uma forma (não meramente idealizada), se estiverem eles mesmos dispostos a aventurarem-se na experiência do presente e deixarem-se afetar por ele.
Esta busca converte-se, como diz Benjamin, na própria lei da poesia de Baudelaire, o poeta que mergulha na multidão e na experiência fragmentária da vida moderna, que atravessa o seu universo de estímulos e de choques, conquistando deste modo a “sensação de modernidade”. A possibilidade de uma poética moderna está pois dependente de um novo ethos e de uma nova estética, ou seja, de novas formas da sensibilidade e da perceção mediante as quais a experiência moderna pode revelar-se e ser apreendida, ainda que à custa do risco de dissolução da arte.
De todos os temas que Benjamin extraiu de Baudelaire, nenhum será talvez mais central do que o da “perda da aura”, título de um dos seus Pequenos Poemas em Prosa: arriscando sair da sua morada resguardada, um poeta é apanhado no tumulto da cidade e, ao atravessar uma rua, por entre encontrões vários, deixa cair a sua auréola no asfalto. Sem qualquer hesitação, e com uma sensação de alívio, prossegue agora incógnito o seu caminho, não pensando sequer em recuperá-la. Contrariamente ao lamento que o tema, ambiguamente melancólico, parece despertar em alguns leitores de Benjamin, o poema de Baudelaire, disposto a aventurar-se na travessia, exclama: “Há males que vêm por bem”!