É a lista de nomes que primeiro impressiona: José Saramago (os romances a partir de 1996), Fernando Pessoa (o Livro do Desassossego), Eça de Queirós (quase toda a obra), mas também Ana Luísa Amaral, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Luís Cardoso, Luis Fernando Verissimo, bem como Machado de Assis, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Régio, Jorge de Sena, Mário de Sá-Carneiro ou Antonio Tabucchi. A Margaret Jull Costa se deve, nas últimas décadas, a repercussão e boa fama que as literaturas em língua portuguesa têm em todo o universo anglossaxónico. Os seus cuidado e inteligência têm sido reconhecidos por diversas vezes, como se pode verificar pela lista de prémios que tem recebido (só o Oxford-Weidenfeld Translation Priz recebeu três vezes, entre muitos outros, incluindo a Ordem do Império Britânico, que a Rainha de Inglaterra lhe concedeu em 2014).
Mas no seu percurso impressiona também a militância. Nascida em Bristol, em 1949, em cuja universidade se formou, antes de rumar a Stanford, nos Estados Unidos, onde se pós-graduou, Margaret Jull Costa é antes de mais uma leitora apaixonada, que tanto recebe propostas das editoras como as desafia. Gosta dos grandes autores, claro, mas também procura aqueles que, por um motivo ou por outro, não têm o reconhecimento que merecem. É o que faz agora com Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis, autor que a cativou pelos diálogos. E o que pensa fazer no futuro, com um regresso a Maria Judite de Carvalho, de quem já traduziu um conto. Entre traduções e outros compromissos, respondeu por escrito às perguntas que o JL lhe enviou, num português límpido e subtil. Como as suas traduções.
Jornal de Letras: O que a levou a traduzir Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis? Foi proposta sua ou da editora?
Margaret Jull Costa: A sugestão foi minha; e depois de publicar quase todos os livros de Eça, Eric Lane, da editora Dedalus, estava interessado em publicar outro autor português do século XIX.
O que a interessou neste romance?
Dinis é completamente diferente de Eça, mas estou fascinada pela maneira como constrói os personagens dos seus livros e como, milagrosamente, consegue evitar a sentimentalismo. O autor mais parecido em inglês é talvez Anthony Trollope.
Em relação a outras traduções, encontrou maiores dificuldades, muitos obstáculos?
Estou muito acostumada à prosa do século XIX. Adoro os romances daquele período. Assim, não encontrei muitos obstáculos, a não ser, talvez, uma certa verbosidade, que não existe na obra de Eça. Mas os diálogos são excelentes.
Quer o romance, quer o autor estão um pouco esquecidos hoje em dia. Traduzir é, para si, uma outra forma de combater este esquecimento, encontrar novos leitores?
Sem dúvida. Parece-me extraordinário que Eça, por exemplo, não seja tão conhecido como Balzac, Flaubert, Dickens, Tolstói, etc.
Uma Família Inglesa retrata um amor bem romântico, segundo os códigos da época. Será que já não se escrevem história de amor assim?
É um retrato muito romântico, sim, mas evita o sentimentalismo e descreve a amizade entre as duas raparigas e as suas relações com os respetivos pais com imensa sensibilidade e perspicácia. Tem também, note-se, um lado satírico. Tudo isto faz do romance muito mais que uma história de amor piegas.
Para os estudiosos da literatura portuguesa é mais conhecida pelas traduções dos últimos romances de José Saramago. Como surgiu essa oportunidade?
Giovanni Pontiero foi o primeiro tradutor inglês de Saramago, e foi ele realmente que apresentou os livros de Saramago ao mundo anglófono. Tragicamente, Giovanni morreu aos 64 anos, em 1996, e a sua editora inglesa, Harvill Press, queria que eu continuasse o seu trabalho, a partir de Todos os nomes.
No seu trabalho de tradução, costuma contactar o autor? Foi o caso de Saramago? Como foi essa experiência?
Sim, normalmente, estou em contacto com o autor e foi esse o caso com Saramago. Não queria incomodá-lo muito com as minha dúvidas, mas ele foi sempre extremamente cordial comigo, e a sua esposa e tradutora Pilar del Río também me ajudou muito.
Tem alguma história engraçada nos contacto com autores?
Uma vez, escrevi a um autor (cujo nome não citarei), pedindo-lhe uma explicação duma frase bastante obscura. Respondeu dizendo que não se lembrava o que queria dizer porque tinha escrito o livro numa época em que estava quase sempre bêbado. Eu podia, disse ele, interpretar a frase como quisesse.
E que outros escritores tem traduzido? São sempre escolha suas?
Do espanhol: Javier Marías, Bernardo Atxaga, Benito Pérez Galdós, Jesús Carrasco, e mais alguns;, do português: Teolinda Gersão, Ana Luísa Amaral, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Pessoa, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, Jorge de Sena e Machado de Assis. Alguns foram escolhas minhas, mas no caso de outros muitas vezes encontrámo-nos por feliz casualidade.
Numa entrevista recente à New York Times Book Review destacou, entre os autores de língua portuguesa, Eça de Queirós, Clarice Lispector e Maria Judite de Carvalho. O que gosta em cada um?
Eça é o meu escritor favorito, e tem sido um enorme privilégio e prazer traduzir a sua obra. Era um génio, capaz de tudo: descrições brilhantes, personagens fascinantes, histórias trágicas e cómicas. Tem um sentido do absurdo muito inglês. Quanto a Clarice Lispector, atualmente faço uma tradução das suas crónicas, e o que gosto nela é o seu estilo completamente idiossincrático, que põe à prova as habilidades linguísticas da tradutora. Maria Judite de Carvalho tem um português límpido e um olhar atento – como Eça – às contradições do ser humano, ao nosso talento para o auto-engano.
Maria Judite de Carvalho é outro nome muito esquecido. Procura ir além do obrigatório e óbvio nas suas leituras e traduções?
Uma amiga recomendou-me Tanta gente, Mariana, e adorei-o e incluí-o numa antologia – Take Six Portuguese Women Writers. Acabo de traduzir Os armários vazios para a editora estado-unidense, Two Lines Press. Parece-me muito estranho que ela não seja mais conhecida em Portugal e noutros países. Mas é sempre um prazer encontrar e traduzir um tesouro escondido como ela.
E será que é possível definir um elemento comum a todos os autores que já traduziu? Ou, pelo menos, comum aos seus autores de eleição? Na referida entrevista, citou ainda Proust, James, Woolf…
Os meus autores preferidos como leitora e como tradutora são os que utilizam as palavras duma forma interessante, conscientes do poder e da música da língua.
Traduz também poesia. Um desafio ainda maior?
Sempre li poesia, mas só nos últimos anos que comecei a traduzi-la. Não faço muita distinção entre traduzir a prosa e a poesia, só que a poesia é mais concisa, mais densa, joga mais com as palavras; no entanto, lidar com tal dificuldade é sempre um prazer. E quando, por exemplo, traduzo os poemas de Ana Luísa Amaral, é sempre uma colaboração. Também trabalhámos juntas na tradução inglesa duma seleção da poesia de Sá-Carneiro. Ajuda muito ter dois cérebros e duas sensibilidades a trabalharem em conjunto.
A pergunta inevitável: como chegou à tradução?
Estudei espanhol e português na Universidade de Bristol, e aí apaixonei-me por Eça, por Pessoa e pela tradução literária.
Que imagem associa a Portugal?
O Tejo.
O que ainda gostaria de traduzir?
Mais contos de Maria Judite de Carvalho e de Sophia, e mais poesia. Adoro os poemas do poeta peruano César Vallejo.
Traduttore traditore, diz a célebre frase. É mesmo assim?
Duma maneira, sim. Cada tradução é uma traição do original porque não é e não pode ser o original, mas o que não é traição nenhuma é a habilidade da tradutora de transpor (eu diria até “trans-mudar”) um texto duma língua para outra língua de uma maneira tão subtil que a tradução se leia como se fosse o original. Aí reside a alquimia da tradução.