Numa entrevista concedida a um jornal luso-francês dirigido à emigração e publicada em 18 de janeiro passado, o Presidente da República produziu, uma semana antes das eleições presidenciais, algumas das mais significativas declarações do seu primeiro mandato, no que respeita aos processos eleitorais e, por extensão, ao próprio regime constitucional por que nos governamos desde 1976. Pena é que tenha esperado pela última semana de campanha e escolhido um jornal de circulação limitada para as divulgar, já que elas introduzem um debate que se arrasta – sem verdadeiro debate – há anos e se tornou mais premente nos tempos de confinamento em que vivemos desde o ano passado.
Em síntese, Marcelo Rebelo de Sousa, integrando a questão do voto na problemática mais vasta da “reforma da Administração Pública” que, segundo ele, tem vindo a ser “atirada para a frente” por sucessivos governos, defende que é urgente introduzir nos procedimentos eleitorais a admissibilidade do voto postal e, até, do voto eletrónico, por entender que “o voto presencial é impossível para um número elevadíssimo de portugueses”. O Presidente agora reeleito lamenta a “desconfiança” ainda dominante em relação ao voto por correspondência, por se admitir que esta forma de exercício do direito a escolher poderia estar inquinada por fraudes de diversa ordem. A verdade é que o sistema atual, exigindo a votação presencial, “afasta as pessoas do voto”.
Os resultados do ato eleitoral de 24 de janeiro são disso uma prova evidente. Como era previsível, a abstenção elevou-se a níveis inéditos entre nós, pelo menos em atos eleitorais convencionais (eleições legislativas, presidenciais, autárquicas). Mesmo assim, ficou longe das previsões catastrofistas de numerosos politólogos, que chegaram a antecipar uma abstenção de 75%! A abstenção total (emigração incluída, já com mais um milhão e duzentos mil recenseados) chegou aos 60,5%, mas em comparação homóloga com as condições de 2016, fixou-se nos 55%. Como é de norma em todas as eleições em Portugal, ouviram-se vozes a carpir estes resultados; mas poucos, pouquíssimas, no entanto, foram ao encontro do diagnóstico contido na entrevista do Presidente: que a doença da abstenção é em larga medida gerada pela renitência dos políticos em aceitar que “o mundo mudou, e ao mudar [exige] fórmulas de participação política diferentes daquelas que existiam antes do mundo mudar”.
A lição das eleições presidenciais de novembro de 2020 nos Estados Unidos deveria apressar a reflexão sobre as esclarecidas afirmações do Presidente agora reeleito: cerca de metade dos 150 milhões de cidadãos com capacidade para votar fizeram-no ali por correspondência e, com isso, assistiu-se à mais alta taxa de participação eleitoral das últimas décadas e, em números absolutos, à mais alta votação de sempre. Uma classe política mais atenta e uma administração pública mais lesta teriam certamente permitido incorporar esta lição ainda a tempo do processo eleitoral que culminou em 24 de janeiro. Só os salva, em abono da verdade, a prioridade do combate à pandemia, que pode justificar a omissão. Mas o sinal de que os cidadãos anseiam por formas alternativas do exercício do direito a votar está nos cerca de 300 mil portugueses que recorreram ao voto antecipado.
Voto antecipado, voto por correspondência, voto eletrónico: estas formas são hoje comuns em diversos países e não consta que, salvo as delirantes acusações não provadas de fraude por parte do ex-presidente Trump, tenham surgido contestações significativas aos resultados apurados por estas vias. A insistência na exclusividade do voto presencial, a pretexto da segurança e da garantia da liberdade do cidadão, é uma falácia: todos os dias, em todo o mundo, realizam-se milhões de transações digitais com plena segurança; por que artes demoníacas não seria possível garantir a mesma segurança para um simples voto? O mesmo se diga do voto por correspondência, embora aqui haja que contar com a eficiência do serviço postal, o que, depois da privatização dos CTT e à luz das deficiências do serviço detetadas nos últimos anos, pode exigir uma contratualização rigorosa entre o Estado e a empresa.
Na sua entrevista, o Presidente defende que é necessária uma revisão da Lei Eleitoral (nos diplomas respetivos que regem as diversas eleições) que acolha formas alternativas de votação, com especial incidência no eleitorado que se encontra fora do país, onde a taxa de participação por voto presencial é, naturalmente, baixíssima. Uma tal revisão permitiria também mexer nos prazos, que há muito penso devem ser encurtados, porque os vigentes já não se conformam com a velocidade de circulação da informação nas nossas sociedades. Exigir um mínimo de 80 dias para marcação de eleições legislativas por queda do governo parece um exagero; regulamentar ao milímetro as campanhas eleitorais como se elas continuassem a ser eminentemente presenciais é uma visão obsoleta da forma como hoje se faz a comunicação política em contínuo, designadamente pela substituição do contacto direto pela comunicação televisiva e pelos meios digitais; prever quase dois meses até à tomada de posse de um novo governo saído de eleições é uma aberração (no sistema britânico, o novo primeiro-ministro entra em funções 48 horas depois do apuramento do resultado eleitoral…); suspender o decurso dos prazos por causa de duas ou três freguesias que boicotaram as eleições é “benefício ao infrator”.
De uma forma geral, torna-se necessário ponderar que há “fantasmas” herdados do regime anterior a 1974 cuja silhueta se esbateu ao longo do quase meio século (!) decorrido desde a instauração da democracia. Convém, por isso, simplificar processos e eliminar as garantias comprovadamente excessivas. Tornar o voto mais acessível, diversificado e moderno é sintonizar o regime com a evolução da opinião pública e aproximar os cidadãos dos seus representantes. E isso não deixará de ser um meio eficaz de combate à abstenção.