Bastante mais tarde, já depois da rodagem do Vanitas no Porto, o Paulo voltou a trazer Os Olhos Vermelhos à baila, mas já como um filme de homenagem a seu pai. O patriarca da família Rocha sempre nos foi descrito como um ser destemido, audacioso e sedutor – qualidades que o realizador, criado com desvelo como um “vidro de cheiro”, não reconhecia em si mesmo…
Perante a personagem de seu pai, Paulo Rocha sentia uma admiração comparável, em intensidade, à imensa consideração pelos pescadores do Furadouro que ele tinha como heróis e gigantes. Entretanto eu já participara em várias versões dos argumentos que viriam a servir de base ao Rio do Ouro, à Raiz do Coração, às Sereias ou Vanitas.
Construíra uma relação de trabalho com o Paulo profunda e profícua, embora ele me achasse “demasiado antiburguesa” e eu me achasse por vezes desnorteada com as constantes reviravoltas dos projetos que se metamorfoseavam à velocidade da luz antes, durante e após o momento da rodagem.
Na verdade, eu gostava que o nosso amigo e mestre fosse assim. O Paulo Rocha tinha do cinema uma ideia paradoxalmente incompatível com a fixação e sempre perseguiu a possibilidade de fazer da sua prática uma arte viva. Filmar era-lhe um ato tão vital e inspirador que o argumentista tinha de ver, sem rancor, no mínimo 50% do seu labor ir pelo cano abaixo.
A improvisação entusiasta, a carne pensante dos atores, o gosto pelas acrobacias de câmara e pelas coreografias dos corpos em sofrimento eram maneiras dele – inimitáveis. Seja como for, dizia um pintor cubista, é sempre preciso uma ideia para matar outra. Trabalhar com o Paulo era inebriante.
Não apenas por ele ser um homem culto e sensível, tímido e generoso, tão absolutamente crédulo como estranhamente desconfiado. Sobretudo porque – e isso é bem mais raro – uma couve galega e uma colcha de seda, o desenho de uma boca e o refrão de uma cantiga, uma sombra esvoaçante e o frio de uma faca, uma cabeleira desgrenhada e um apontamento de nuca eram coisas tão importantes (ou mais) do que toda as ciências e narrativas.
Por outro lado, o Paulo misturava saberes com uma desenvoltura que, embora resultante dos seus privilégios de classe, não deixa de ser incomum: casar as artes do kabuki com um baile de S. João, o génio camoniano com a veia de uma cantiga popular, o enredo do Genji com as intrigas da corte lisboeta, etc. era uma parte importante do seu método. Um método que abraçava comovidamente o caos do mundo.
Se eu fosse ladrão….. provém dos Olhos Vermelhos mas, aos poucos, da matriz inicial só restaram sombras em palimpsesto. Foi difícil, para mim como para todos os colaboradores do realizador, perceber em tempo útil a violenta mutação de um filme evocador da figura algo pícara do pai aventureiro naquilo a que se poderia chamar, com muito amor na boca, o filme dos filmes.
Não quero introduzir spoilers neste meu “depoimento” pois acredito ainda na relação singular, direta e desamparada com as obras. Apetece-me ainda assim dizer que o Paulo terá sido o primeiro artista a dar corpo à ideia de que o roubador pode ser dono da coisa roubada. Pois todo o dono é ladrão, não sei se me faço entender. Ladrão que rouba ladrão tem anos de perdão e não é por acaso que o profeta foi crucificado entre dois larápios.
Perguntam-me qual será o legado do Paulo Rocha ao cinema português? Antes de mais, a sua obra concreta, as suas obras, todas elas. E oxalá as políticas do gosto não votem ao esquecimento filmes menos consensualmente saudados. Também o muito que ele ensinou (sem paternalismo embora fosse um homem fascinado pela gente mais nova) às pessoas que por diversas razões com ele se cruzaram.
Sem esquecer a memória da sua postura de homem avesso a conflitos mas contestatário das muitas formas de preconceito travestido e de provincianismo bacoco que por aí grassam, favorecendo, entre outros fenómenos, o esmagamento das inquietudes do país pelo pensamento único que a capital do ex-império fabrica.
Por último – já vai longo este derrame de lembranças – a vontade utópica nunca desmentida de reinventar um cinema popular, sem todavia fazer a menor concessão ao pretenso “gosto do público”. Nesse e noutros sentidos, Paulo Rocha será sempre, no seio do cinema português, o farol, a tempestade interior e a necessidade de a enfrentar.