Uma escola é feita de muros. Uma escola não é feita de muros. Podia ser uma acrópole no extremo alto, podia ser uma pirâmide, convexa ou reta, podia ser um jardim. A escola é construída com tijolos e feita sobre gente. Uma história de múltiplas palavras.
Não são os tempos, é o tempo, as horas partilhadas em torno de pensar. A confiança estabelecida permite continuar a questionar: seremos livres? Não estamos determinados, mas também não somos livres – a afirmação que salta da garganta e deixa o António ruborizado. O entusiasmo do António é o meu entusiasmo, ou diremos o meu entusiasmo é o entusiasmo do António? Como nos meandros do amor, assim ensinar, que é sempre nunca chegar, que é sempre querer mais. O toque da campainha nunca vem a propósito.
Quando comecei a ensinar, quatro anos depois de ter decidido outro percurso na Filosofia que não ensinar, não sabia se poderia gostar. Se estaria à altura de tarefa tão nobre. Se, acima de tudo, seria capaz de transmitir o que sei. Afinal, se esse saber seria passível de ser transmitido.
Parece-me da maior importância que tenhamos presente que a educação é estrutura fundamental à solidez de uma casa chamada país. Foram os alunos que me mostraram que eu gostava de ensinar, logo no ano de estágio. E foram sobretudo eles que me demonstraram a urgente necessidade de pensar, a essencial presença da disciplina de Filosofia nas escolas. Foram eles que me mostraram que através deles poderia compreender melhor o que eu própria sabia.
Os alunos demonstram-se tão interessados em aprender quanto maior for a nossa capacidade de os fazer compreender de que falamos, ou da importância que há no saber. Uma turma de um malfadado curso profissional é capaz das mais brilhantes perguntas na visita à exposição Mapa Mundi do CCB. Estupefactos assistem à peça Martin e Hannah numa sexta-feira à noite no Teatro Aberto, sem que Martin (Heidegger) ou Hannah (Arendt) façam especialmente parte do programa de Filosofia do ensino secundário.
Devem ser nove horas e quarenta minutos, a Madalena zanga-se comigo e grita, já depois de toda a turma ter abandonado a sala, que assim não é possível. Vive-se em constante sobressalto. Afinal qual é a resposta? Sorrio-lhe, quando na verdade o que me apetece é dar-lhe o abraço de quem recorda os dezassete anos mais todas as dúvidas. Não há como. Pavorosas são as incertezas. Não será mais importante a pergunta que a resposta, Madalena? Agarra o cabelo com força e volta a gritar – não sei nada, não sei nada.
Uma aluna muito socrática, penso, enquanto lhe digo que vá tranquila, sexta-feira voltaremos a falar. Gostaria de estudar Filosofia, mas assim não pode ser. Enlouquece-se. Não se sabe de nada, não há respostas. O que é isto? Dez minutos passados e a Madalena continua zangada, o que me deixa particularmente feliz. Não se zanga comigo, antes com a Filosofia. Senhora com a qual amiúde também me zango. Digo-lhe que pensar dói. De dentro festejo por ela e por mim.
Ensinar é acontecer pensar em conjunto, o que me faz gostar de ensinar, do mesmo modo que sempre gosto de aprender. Direi de primordial importância numa disciplina como Filosofia, tal que os alunos assim o exigem. A capacidade de questionar é nossa desde sempre, o que urge é estimula-la. No meu percurso, a Filosofia foi uma inevitabilidade ainda antes de ser uma escolha.
Demasiado cedo, creio, colidi com Platão, veio Sartre que trouxe Camus, a amiga que ofereceu o Zaratustra e me fez acompanhar de Nietzsche, na escola Kant e Descartes, sem fazer ideia do que podia passar-se, não mais deixei os filósofos. Nada que não aconteça a adolescentes que sofrem em particular do mal da existência, das perguntas à velocidade da luz, das iradas dúvidas. O fundamental é ter acesso aos livros. Os livros. Em casa, nas bibliotecas, por onde se possam encontrar. E recordo-me das bibliotecas itinerantes. Ainda lhes sinto o cheiro.
O amor pela leitura devo-o à minha mãe. Histórias, livros e poemas ocupavam toda a casa. Ter podido escolher o que fazer na vida adulta, escolha sempre tormentosa, como ensinar e estudar Filosofia, agradecê-lo-ei vida fora aos meus pais – não há ofício mais privilegiado.
À entrada da sala não há consenso, por que raio devemos opor dever a felicidade?
Mentir é sempre mau. Não sou feliz a mentir, ora essa. As ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, não andamos cá para sermos infelizes. Felicidade que significa maior prazer. Hedonistas! A boa vontade é boa em si, não é para favorecer alguma coisa. Não é melhor agir por dever? Não deves mentir porque é mau, mesmo que isso não te favoreça. Parecia-te bem matar uma pessoa para salvar dez? E se essa pessoa fosse a tua mãe? Também não deves não mentir com medo de ser castigado, isso não é nada. Uma escola não é feita de muros, é feita de intensidades.
Sócrates é acusado de corromper a juventude e condenado à morte. Cicuta pela primavera estaria o mundo em 399 a.C. No cárcere de Atenas acompanham-no a sua mulher, alguns amigos e os seus discípulos. Dirige uma prece aos deuses para que seja feliz a mudança de habitação de aqui para além e eleva o copo aos lábios. Apolodoro, de choro contínuo desde o início do corredor da morte, não contém o grito em lamúria ao mestre. Todos choram. Sócrates ordena-lhes que parem e aguarda sereno que o veneno atinja o coração. Platão homenageará o seu mestre, de quem se torna discípulo aos vinte anos, em referência fundamental em muitas das suas obras, revelando a influência que Sócrates teve no seu pensamento e, consequentemente, na sua vida.
Em 1227, Dogen Zenji, venerado mestre zen-budista, nascido em Kyoto, escreve em mantra aos seus discípulos: “honrados discípulos, segui a legítima linhagem dos patriarcas, perseverei e sereis como eles. A vossa sala do tesouro abrir-se-á sozinha e dela tirareis o que o vosso coração desejar.” No século XX português, Ricardo Reis e Álvaro de Campos anunciam-se discípulos de Alberto Caeiro. Caeiro mestre dos restantes heterónimos e do próprio Fernando Pessoa ortónimo. Em Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, assinado por Álvaro de Campos, pode ler-se: “Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excecionais – como todas as circunstâncias da vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão de vir a ser tudo nos resultados.”
O Rafael chega atrasado, pergunta-me se pode entrar. Pergunto-lhe o que aconteceu. Diz-me que demorou imenso tempo a ajudar uma senhora muito velhinha a atravessar a estrada. No rosto o sorriso. Faço um esforço para controlar o riso que me cai do coração. Os colegas pedem-me que o deixe entrar. Ordeno-lhe que se sente, que não pode voltar a acontecer. Os vinte e nove presentes têm o Rafael no peito. A mãe retirou-se a si mesma da vida o ano passado. O Rafael foi trabalhar de noite para ajudar a família, um só salário não é suficiente, tem dezanove anos e um humor que Freud apreciaria, atendendo à tese de que o humor é o mais inteligente mecanismo de defesa. Trabalha até às duas da manhã, chega a casa às duas e trinta, adormece, não adormece, são oito horas e trinta e cinco minutos. Os colegas sussurram-lhe, página 83. Uma escola não é feita de muros, é feita de amor.
O António entrega-me um tratado, o seu, sobre a liberdade, vem assinado com pseudónimo e título faustoso próprio dos quinze anos, uma leitura para férias, acrescenta. A Madalena decide que ainda não pode decidir se consegue estudar Filosofia porque para ela é uma questão de se conseguir ou não viver sem respostas. Não lhe digo que sim, como não lhe respondo que não. É angustiante a decisão, diz a tremer por dentro, mas ainda tenho um ano, stôra. Encontro o Rafael ao cruzar a escola, de saída para o Verão está aliviado porque passou a Química, a mãe havia de ficar muito feliz, que assim termina a escola e vai dedicar-se à vida militar.
Não se ouve eco de passos no pátio, não se sabe se a felicidade se opõe ou não ao dever, ou se a liberdade vence o determinismo. Certezas não proliferam na escola. O António, a Madalena, o Rafael. O Sócrates, o Apolodoro, o Platão. O Fernando, O Alberto. Dogen, eu mesma e todos os nomes. Uma escola não é feita de muros, é feita de nós.
Em memória à professora Maria Helena Varela que um dia me ensinou – a rosa é sem porquê.