Às vezes, quando escreve, sente-se Outro. Escrever, para António Tavares, é um mergulho numa realidade paralela, que não poucas vezes traz à página tempos da infância e juventude. É o caso do seu último romance,
As Palavras que me Deverão Guiar um Dia, que chega hoje às livrarias, com a chancela da Teorema. Em quinze dias, António Tavares alheou-se de tudo para conseguir dedicar-se a um livro que já tinha na cabeça há muito tempo. Começou na primeira palavra e só acabou na última, garante-nos. Uma “febre literária”.
Mas foi também uma quinzena de férias, a única que tirou nos últimos anos. É que ser vereador da Câmara Municipal da Figueira da Foz tem o seu preço. Que quase nunca dá troco à escrita. O dia-a-dia é muito preenchido, as reuniões de câmara e as assembleias municipais não têm tempos mortos, que de bom grado ocuparia com rabiscos, e as solicitações nunca mais acabam. Por isso, afirma: “Para se escrever, é preciso uma boa dose de alienação”. A inspirar algum texto, a política estaria mais na base de óperas bufas do que romances. “Muito da política passa pela comédia”, afiança. “É um jogo que faz lembrar as peças de Gil Vicente.”
Não se pense o contrário: é com gosto que António Tavares joga o jogo da política. No entanto, muito mais forte é o apelo da escrita. Pode até afirmar, sem o risco de parecer slogan eleitoral, que o sentiu muito cedo. Nascido no Lobito, em Angola, em 1960, cresceu onde hoje já não se cresce: na rua. “Naquele tempo, vestia-se uns calções e saía-se para a rua”, lembra. “As crianças trepavam para uma árvore e construíam os seus mundos”. Essa mesma imagem transportou para o seu livro. Ao abrir os seus antigos cadernos de linhas, o narrador parte em busca do tempo perdido. “A vida toda, a minha, sopra volátil nas palavras do meu caderno de papel pardo, companheiro inseparável dos meus poucos dias de meninice até aos muitos anos que já vivi.”, escreve o narrador, para depois acrescentar: “Se as palavras nomeiam as coisas – que o mesmo é dizer, este meu mundo – mas também dão existência à realidade, aqui fica ela, toda a minha realidade”. Um romance que é também “um baú de memórias”.
Esta sensação de que as “palavras nomeiam as coisas” António Tavares sempre a teve. Das árvores da rua passou para as da leitura, numa voragem que ainda hoje mantém. “Antes de tudo sou leitor”, assegura. “Num certo sentido, este romance é uma homenagem à Literatura, aos livros que moldaram a minha presença no mundo”. Ler e viver. Eis como António Tavares encheu o “copo”, requisito que considera fundamental para a escrita, que surge quando tudo “transborda”. No momento certo. Regressou de Angola com a ponte aérea, em 1975, e concluiu o liceu no Porto. Desceu a Coimbra para se licenciar em Direito e afeiçoou-se à Figueira da Foz. Foi professor do ensino secundário durante muitos anos, também nos Açores, e nos intervalos começou a dar vazão à escrita. Primeiro, como jornalista amador, mais tarde já profissional, nomeadamente no jornal
A Linha do Oeste, que fundou. Seguiu-se o teatro e o ensaio como espaços para reciclar o que a vida lhe foi dando.
Trilogia da Arte de Matar,
Gémeos 6 e
O Menino Rei são algumas das suas criações teatrais, que também encenou, e no ensaio abordou, entre outras, as obras de Luís Cajão, Manuel Fernandes Thomás e Redondo Júnior.
A experiência autárquica veio depois de tudo isto. António Tavares foi eleito, pela lista do PS, nas eleições legislativas de 2009, com mandato renovado no escrutínio de 2013. Hoje, tem competências nas áreas de Cultura, Educação, Formação Profissional, Saúde e Ação Social. Cargo de muita responsabilidade, ninguém duvida. Mas à semelhança do que fez para
As Palavras que me Deverão Guiar um Dia, já voltou a tirar férias. Tem no prelo um outro romance, O Tempo Adormeceu sob o Sol da Tarde, e acabou de escrever uma história na qual ecoam as dificuldades por que passam hoje muitos portugueses. A escrita, como se vê, é o seu pelouro escondido.