1. O realizador nas recordações da atriz e mulher
Dheeraj Akolkar é um cineasta indiano-inglês que no Festival de Haugesund, na Noruega, apresentou a sua última rodagem: Liv & Ingmar. Segundo li, Liv Ullmann hesitou em participar no projeto, acabando por aceder após considerar melhor o teor e finalidade do filme. Produzido pela televisão norueguesa, foi apresentado pela congénere sueca há um par de semanas.
Muito resumidamente, esta produção consiste em confissões/recordações da atriz norueguesa antes e depois da sua relação com Bergman, trechos esses que são “ilustrados” com cenas breves de filmes em que ela foi a protagonista e ele o diretor. Amiúde, vemos Bergman a passear sozinho pelas praias agrestes e ventosas da “sua” ilha no Báltico, que bem conheço. A antítese do bucolismo.
Alérgico que sou a todo o tipo de mexericos, além de me julgar bom conhecedor do caráter, vida e obra de Bergman, vi este filme. Vale a pena, ver mormente pela cena final. Antes disso, porém, alguns detalhes interessantes: a sinceridade com que Ullmann nos fala do humor, da poesia, da violência por parte de ambos durante a relação.
Da sua estada em Hollywood, por exemplo, conta-nos, divertida: “Julgaram-me uma nova Greta Garbo. Num ano fiz quatro filmes. Creio ter sido até hoje a única atriz que levou à falência duas companhias cinematográficas”. E confessa-nos ainda: “Ingmar, que detestava viajar, meter-se num avião, foi a Nova Iorque para me ver representar Nora. Foi, viu o espetáculo nesse dia, e regressou na mesma noite à Suécia.”
No parapeito de uma janela do seu quarto de trabalho, na casa de Fårö, está ainda uma brinquedo, um ursosinho a que Bergman (como todo o homem adulto faz, ele perseverava uma dosesinha de criancice) tinha muita estima. A razão disto: nele, Bergman metera um bilhete em que Liv Ullmann lhe agradece ter participado em Os infiéis. Pouco antes de falecer, a viver só, ouvi-o dizer: “Quando jovem, receei a morte. Hoje dar-lhe-ia as boas-vindas.”
Na última cena do filme de Akolkar, Ullmann conta-nos: “Nunca na minha vida fretei um avião. Mas nesse dia fi-lo, fui a Fårö. Sentei-me à beira da cama onde Ingmar estava moribundo, já não falava. Então fui eu que fiz o diálogo. Disse-lhe: ‘Ouvi que me chamavas, por isso estou aqui.'”
Ouço isto no filme e instintivamente recordo as gargalhadas estridentes de que este inesquecível meu amigo, Ingmar Bergman, era capaz de nos dar.
2. Êxito, em Estocolmo, da maestrina portuguesa
Os invernos nórdicos são implacáveis, mesmo os serôdios como o deste ano. Em tempos truculentos como os de hoje, o purgatório duplica-se. Felizmente, resta-nos a Arte. Com maiúscula, porque capaz de dissipar trevas invernais, e de forma enigmática, benfazeja, tranquilizar simultaneamente todo o espírito atormentado.
Este ano, dois eventos culturais contribuíram sobremaneira para isso: a vinda de Joana Carneiro (JC) a esta capital – pela segunda vez, sublinhe-se – para dirigir a Real Filarmónica de Estocolmo, e a estreia, na TV, de uma recente curtametragem do diretor indiano Dheeraj Akolkar sobre o amor entre a atriz norueguesa Liv Ullmann e o inesquecível cineasta sueco Ingmar Bergman.
O programa do concerto foi escolhido com esmero, atraindo assim um grande público, bem repartido pelas três faixas etárias de amantes de boa música. Depois, uma maestrina não se vê amiúde.
E JC foi, no mínimo, brilhante na sua diferenciada direção da orquestra. Foi poética e enérgica. Não obstante claramente engripada, nem por um instante deixou antever o mal-estar, má disposição e fadiga que nos assola em idênticas circunstâncias. Sentado no lugar onde me sento há 40 anos e do qual sigo o jogo fisionómico dos maestros e dos solistas de cada espetáculo a que assisto, pasmei perante o vigor e a vivacidade com que esta nossa conterrânea desempenhou a sua tarefa. Joana Carneiro até sorria! Mais: embora com a partitura diante de si, JC só a folheia de quando em quando, sabe-a de cor, é evidente! A sua mão esquerda reúne o rigor e a firmeza que cada orquestra deseja ver, a uma sublimidade e leveza iguais à do italiano Cláudio Abbado.
O programa constou de três clássicos: Mozart (Sinfonia n° 29 em lá maior); Bizet (Carmen, suíte n° 2, arranjo de Ernest Guiraud); e, após o intervalo, Ravel (Daphne e Chloé, música de bailado). No programa, antes da pausa, participou ainda Kristina Hansson, soprano, que deliciou o público com árias de As bodas de Fígaro. Talvez me engane, mas creio que a brevíssima troca de palavras entre JC e a solista foram as mesmas que o maestro vienense, Herbert von Karajan – com o olhar e sorriso pícaro que sabia usar – costumava dizer às cantoras: “Don´t worry. I will follow you.” Perante os aplausos incessantes de uma sala cheia – a mesma onde os laureados com o Nobel recebem o Prémio – Joana Carneiro teve de voltar três vezes à ribalta. Bravo! Bravíssimo!
P.S. Por ocasião da atual retrospetiva da obra de Bergman em Portugal, recomendo a sua biografia Lanterna Mágica, reeditada pela Relógio d´Água em 2013.