Não é mera questão de gosto. Para Beatriz Batarda, escolher um texto para encenar é também um “ato político”. Como o é, de resto, todo o teatro. Desta vez, leva à cena Como Queiram (‘As You Like It’), de William Shakespeare, uma comédia de enganos que alia uma crítica social feroz a uma ‘mensagem’ de esperança. “Um elogio à vida”, nas palavras da encenadora e atriz, de 39 anos, que parte da peça também para falar da situação atual do país. E “apelar” à mudança. Depois de três anos de sucessivos adiamentos, sobretudo por falta de financiamento, a peça sobe ao palco do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, no próximo dia 14, terça-feira, onde fica até 26 de janeiro, seguindo depois para os Teatros Viriato, em Viseu (7 de fevereiro), Carlos Alberto, no Porto (de 14 a 23 de fevereiro), Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães (1 de março), e Theatro Circo, em Braga (7 de março). A produção é do Arena Ensemble – plataforma de criação artística que criou, em 2007, com o realizador e encenador Marco Martins -, em parceria com o São Luiz, o Teatro Nacional São João e A Oficina, e conta com interpretações de Bruno Nogueira, Carla Maciel, Leonor Salgueiro, Luísa Cruz, Marco Martins, Nuno Lopes, Romeu Costa, Rui Mendes, Sara Carinhas e Sérgio Praia; tradução de Daniel Jonas; figurinos de José António Tenente; desenho de luz de Nuno Meira; cenários e adereços de Luís Lacerda; e assistência de encenação de Teresa Coutinho.Praticamente a mesma equipa que começou a pensar o projeto, em 2010, à exceção de Pedro Moreira que veio substituir Bernardo Sassetti na composição musical do espetáculo, depois da sua prematura e dramática morte, em 2012. Nos dias 18 e 25, haverá uma conversa entre a equipa artística e o público, depois do espetáculo.
Jornal de Letras: O que a atraiu nesta peça de Shakespeare?
Beatriz Batarda: Para já, não teria coragem de fazer uma tragédia. Não me atiraria para tão longe nesta altura da minha relação com o teatro, que considero ainda muito jovem (apesar de já ter 21 anos…). Partindo de tal premissa, e de entre as comédias, esta é a peça que para mim é um elogio à vida e por isso foi a que mais me apeteceu fazer.
Porquê?
Tal como a Coriolano, que vai estrear no D. Maria, é uma peça política, embora aquela seja trágica e esta cómica. Como queiram é uma crítica social feroz. Brinca muito com estereótipos relacionados com a classe social, o género, a faixas etária… Shakespeare mistura e deturpa isto tudo. Põe, por exemplo, o homem mais velho, que está à beira da morte, a dizer que a sorte continua viva como quando ele tinha 17 anos, uma vez que tem agora uma nova oportunidade de refazer a vida, seguindo Orlando na sua fuga. Não é por ser velho e sábio que vai deixar de fazer novas escolhas e de se atirar à sorte.
São personagens que lutam contra o seu ‘destino’?
A peça começa precisamente com esse tema, com um ‘confronto’ entre a natureza e a sorte, questionando-se o que comanda as pessoas. No fundo, está-se a perguntar: até que ponto a sorte pode prevalecer sobre a natureza, seja ela género ou faixa etária? Podemos ou não fazer escolhas sobre a nossa própria fortuna? Onde estão as limitações e as portas abertas? Neste sentido, estabeleço um paralelismo entre a história da peça e o 25 de Abril…
De que forma?
Na peça, as pessoas ou são expulsas ou abandonam de livre vontade uma sociedade urbana, civilizada, abdicando das regras sociais, daquilo que está pré-estabelecido. Abandonam as normas e os preconceitos e vão para a floresta que é sempre o lugar de eleição do autor como espaço de liberdade e de reencontro com a verdadeira essência de cada um. As personagens vivem essa experiência de libertação das suas ‘bagagens’ genético-culturais e de redenção, no sentido em que encontram aquilo que verdadeiramente as move, e regressam à Corte para refazê-la agora sob outros moldes. De certa maneira, o 25 de Abril também foi isso. Houve um reencontro com o campo, a Natureza, as classes trabalhadoras, para a partir daí construir uma verdade mais democrática e tolerante. Sendo que essa ‘nova ordem’, entretanto, com a evolução do mundo e da globalização, tornou-se uma utopia.
Utilizando a imagem da peça, precisamos de voltar à ‘floresta’?
A fuga já está a acontecer. Seja para a nossa ‘floresta’, como há muitos jovens que estão a regressar à vida no campo, seja para outros países. Outras ‘florestas’, porque mesmo que sejam urbes, são ‘florestas’ no sentido em que as pessoas estão livres da tal herança genético-cultural. Portanto, a fuga está em curso, seja por opção, necessidade ou expulsão. Quanto mais não seja aceitando o convite do primeiro-ministro para emigrarem…
ESPERANÇA E REDENÇÃO
Alguns momentos musicais do espetáculo vão buscar temas do cancioneiro alentejano. Foi para aproximar a peça à realidade portuguesa?
As músicas foram compostas a pensar neste universo popular, de reencontro com o povo, de pacificação entre as classes, as ditas elevadas e as trabalhadoras. É uma tentativa de união das várias classes, e de diálogo e reconhecimento das diferenças e dos direitos de parte a parte. A música é acústica. O Pedro Moreira não escolheu os instrumentos por acaso: o acordeão, as guitarras, a flauta. A última canção, Fui Colher Uma Romã, era muito apropriada porque no fim eles já estão fartos do campo e vão voltar para a cidade. Então ‘colhem’ a romã, palavra que lida ao contrário dá amor, e que é também símbolo de fertilidade. Além disso, há algumas referências ao 25 de Abril, por exemplo um salpicar de cravos. E também uma referência à dor que estamos todos a viver neste momento… Um sangramento, mas verde.
De esperança? Sim. We bleed but we bleed green. Estamos todos a sangrar muito. Sinto que estamos a despedir-nos de uma coisa qualquer, no entanto acho que não temos que ter medo do que possa vir. Temos que construir esse início. E implicarmo-nos todos. O tempo ajuda evidentemente. Eu que o diga… Ou todas as pessoas que passaram por momentos muito difíceis. No fundo, à minha maneira, esta peça é um apelo. Uma afirmação política congregadora.
Para si, é sempre necessária essa relação com o presente?Encenar ou interpretar implica sempre um ponto de vista, que tem de ter eco no público. De certa maneira, isto é política. Todo o teatro é política. Todas as formas de expressão artística são transpirações de coisas que a população, no geral, ainda não teve tempo de racionalizar. Vêm de outro sítio. Os políticos devem estar muito atentos àquilo que acontece na arte dos seus países, porque a arte é uma espécie de oráculo daquilo que está a brotar no inconsciente da sociedade.
Que projetos tem para o futuro? Quero dedicar-me ao Arena Ensemble, juntamente com o Marco Martins, e continuar a dar aulas de interpretação na Escola Superior de Teatro e Cinema. Temos dois espetáculos em carteira: este e o Two Maybe More. Estamos a tentar que circulem o mais possível. E queremos concentrar-nos na estruturação do projeto. 2014 será um ano de reflexão sobre o que já fizemos, para onde queremos ir… Temos tido um percurso discreto, mas privilegiado. Temos apresentado espetáculos em salas maravilhosas e tido apoio dos diretores artísticos. E temos feito textos excelentes e projetos mais experimentais. De alguma maneira, o Como Queiram é um espetáculo onde deixamos a romã plantada, na esperança de nos conseguirmos fortalecer.