Pode não se acreditar em coincidências, pero que las hay, las hay, como o Quixote dizia das bruxas. Aqui há dias, procurando entre velhos papéis, veio parar-me às mãos o convite para o espectáculo inaugural do Teatro-Estúdio do Salitre, de que eu fui um dos fundadores, em 30 de Abril de 1946. Sucede que umas horas antes, havia tido necessidade de anotar a data da minha licenciatura em Direito: 13 de Julho desse mesmo ano de 1946.
E era outra concidência: a preparação do espectáculo, em que tomei parte activa, e a preparação para o exame final, quase simultâneas. Pouco mais de dois meses separavam dois acontecimentos tão diversos entre si mas decisivos ambos para o rumo que a minha vida iria tomar daí em diante -e, entre acertos e desacertos, angústias e esperanças, ilusões e desilusões, mágoas (muitas) e alegrias (algumas), mais de meio século foi passando…
A inesperada -e imprevisível -aproximação daquelas duas datas teve o condão de transportar-me até esse tempo, ou de fazê-lo avançar até mim: até este que hoje sou. Se o exercício do Direito foi, e em certa medida continua ainda a ser, a minha profissão, agora mais oficial do que oficinal, a prática do teatro nunca deixou de ser -aliás, já então, e desde que me conheço, era -a minha paixão. O equilíbrio entre ambos foi conseguido à custa de algum desequilíbrio e a coexistência, para ter sido possível, acompanhada de sacrifícios e renúncias de um lado e do outro. Mas são inseparáveis um do outro, e eu de qualquer deles.
Por esses dois caminhos, o Teatro e o Direito, iria prosseguir então a minha vida. Caminhos que, sendo-o embora, nunca foram paralelos, mas convergentes. Porque o teatro é uma exigência de justiça, e um tribunal o palco de uma representação.
E é o destino dos homens que em ambos está em causa.
Concluído o curso na velha Faculdade do Campo de Santana iniciei logo o estágio e, durante dezenas de anos um largo segmento da minha vida ficou ligado às salas de audiências, aos gabinetes e às secretarias dos tribunais, de Lisboa sobretudo, mas também de muitos outros pontos do país.
Mas foi aí, e essa experiência aproveitou à vertente criativa da minha actividade, que pude tomar mais directo e mais fundo contacto com a dupla face, trágica umas vezes, grotesca, outras, da comédia humana.
Era um tempo em que as relações entre os advogados e os juízes se pautavam por regras de boa convivência, sem desconfianças ou reservas de parte a parte, como hoje parece que tende a ser hábito.
Nenhum magistrado nos recusava a porta do seu gabinete, e se, por excepção, com algum isso acontecesse, logo o facto era comentado e reprovado. A independência de cada um mantinha-se intocada, e, para exercer a sua autoridade, os juízes não precisavam de impô-la sobranceira e arrogantemente. O caso dos tribunais políticos, os plenários -e muitas foram as vezes que neles intervim, defendendo amigos ou companheiros de ideias e princípios -era diferente; mais aí, já não se tratava de direito e justiça, apenas o arbítrio imperava. E era um tempo em que os advogados defendiam causas, não mediavam negócios nem traficavam influências. Um tempo em que a advocacia era, para muitos, para quase todos, “sobretudo um modo de ser e de estar, mais do que um modo de vida”, para citar o advogado e intelectual exemplar que é Miguel Veiga.
Durante anos fui conhecendo, e com alguns deles cheguei mesmo a trabalhar, as grandes “águias do foro”, les ténors du barreau, como dizem os franceses: Azeredo Perdigão, Burstoff da Silva, Adelino da Palma Carlos… E, no pólo oposto, a pequena falange dos “militantes de base”, profissionais experientes e hábeis, de gesto largo e verbo fácil, que nas suas alocuções visavam por igual convencer os juízes e angariar futuros clientes entre o auditório que avidamente os escutava… Alguns foram, no seu tempo, extremamente populares, até pelo pitoresco ou a extravagância. O caso mais memorável talvez tenha sido o de um oficial do Exército reformado, um Costa-qualquer coisa, que, ao defender um réu acusado de haver assassinado os pais, teria invocado como circunstância atenuante, justificativa da benevolência do tribunal, o facto de … ser orfão! Os seus mitos, as sua vozes, os seus gestos, aparecem, desaparecem… Voltam a sumir-se nos mesmos bastidores sombrios de onde agora emergem grandes senhores da advocacia: Fernando Abranches-Ferrão, de quem fui durante mais de vinte anos companheiro de escritório, Heliodoro Caldeira, Eduardo de Figueiredo, José Magalhães Godinho, Mayer Garção, Francisco Zenha, Mário Soares, Duarte Vidal… E, entre os mais novos, Jorge Sampaio, que convidei para trabalhar comigo no contencioso de uma companhia de seguros (ele, generosamente não se esquece de o lembrar quando vem a propósito), e José Carlos de Vasconcelos, que foi meu estagiário… Escrever os seus nomes é escrever a palavra liberdade, que todos exemplarmente defenderam.
Em 1973, com a eleição para a presidência da Sociedade de Autores, comecei a afastar-me progressivamente da barra dos tribunais, onde hoje a minha presença é meramente acidental, e a dedicar-me a outra área jurídica à data muito descurada entre nós: o Direito de Autor. Desde então sobre ele tenho escrito e falado, dentro e fora do país, leccionado no Instituto Jurídico da Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e até legislado quando em 1985 participei na discussão e votação parlamentares do Código hoje em vigor. Digamos que jurista e autor coincidiram na mesma pessoa, para a qual ambos convergiram.
Mas havia, e há ainda, o teatro… Havia o teatro, a que eu brincava desde os 4, 5 anos -o meu pai construíra-me um teatrinho de madeira onde eu punha os meus bonecos a representar, diante de cenários recortados das Images d’Épinal e colados em cartolinas, histórias que eu inventava ou recriava a partir de outras que tivesse lido. E não tardou que, desse teatro de brincar, eu passasse ao teatro “a sério”: em 1931 assisti, pela primeira vez, deslumbrado, ao encantamento de fingir a verdade, de transformar a verdade em ficção e a ficção em verdade.
Não só como espectador. À entrada dos anos 30 (e da Avenida da Liberdade), o meu avô paterno fundou o café Palladium, um edifício em estilo art déco, que é hoje um asséptico centro comercial.
Frequentavam-no muitos actores, que entre o ensaio da tarde e o espectáculo da noite ali se reuniam em animadas tertúlias com escritores e jornalistas. O meu avô levava-me a vê-los nos teatros onde à noite representavam, e no final da peça íamos visitá-los nos camarins, onde se ficava a conversar enquanto se desmaquilhavam e voltavam a ser os mesmos que eu tinha conhecido no café. Fascinava-me este jogo de construção/ desconstrução/ reconstrução.
Esta dialéctica (palavra que eu então, é claro, desconhecia!) da ilusão e da desilusão, da ficção e da vida. Para mim, o mundo era o teatro. E o teatro era o mundo.
Assim me fui familiarizando com grandes e modestos actores, Alves da Cunha, Assis Pacheco, Samwell Dinis, João Villaret, mas também António Palma, José Azambuja, Octávio Bramão, os “soldados rasos”, sem os quais no entanto as guerras não se ganham, e, menos assíduas, actrizes como Maria Brandão, Adelina Campos, Georgina Cordeiro, Maria Lalande… Mais tarde passei a visitá-los nos teatros onde actuavam; e foram muitas as peças a que assisti duas vezes, uma na plateia, outra nos bastidores. Talvez eu julgasse, então, que estava a apropriar-me do teatro. Na realidade, era o teatro que estava a apropriar-se de mim. O Estúdio do Salitre foi, em 1945, o salto em frente. Da cena experimental, de que ele foi o pioneiro, passei à cena profissional. E quantos artistas, de entre os que eu tinha conhecido no Palladium, visitado no seu camarim, visto representar e aplaudido, não vieram a dizer, no palco do Nacional da Trindade, do Ginásio ou do Avenida, do Apolo ou do Monumental, palavras que eu escrevi ou traduzi -mas como podia eu sabê-lo, então? E acreditaria, se por antecipação mo dissessem?! Daqueles seis teatros, só os dois primeiros subsistem hoje; os restantes, consumiu-os o fogo, sacrificou-os a reconstrução urbanística ou imolou-os a especulação imobiliária. A memória afectiva que a todos eles me liga é particularmente viva e forte em relação a três: o Apolo, o Nacional e o Avenida.
O Apolo, onde o meu nome pela primeira vez figurou num cartaz, ao lado de Alves da Cunha, temperamento genial de artista, condenado a acomodar-se, as mais das vezes, à cinzentez de um reportório condicionado pelas estúpidas restrições censórias, e da sublime Maria Lalande, de Álvaro Benamor e de uma grande actriz, vinda dos últimos anos do século passado, Emília de Oliveira, que ali teve o seu “canto do cisne”.
O Nacional, onde em 1952 sofri o desgosto e a raiva da proibição de O Dia Seguinte, mas tanbém, quatro anos depois, a emoção da estreia de Alguém Terá de Morrer, e o privilégio de ter, como intérpretes, Amélia Rey-Colaço, Palmira Bastos e Carmen Dolores, Rogério Paulo, José de Castro e Ruy de Carvalho.
E, por fim, o Avenida, onde, durante os ensaios e as representações de uma peça italiana que eu havia traduzido, uni o meu destino àquela que foi, ao longo de 40 anos, a minha companheira inigualável e insubstituível, mãe da minha filha Catarina, avó das minhas netas Matilde e Adriana, que só através das suas interpretações cinematográficas (A Rosa de Alfama, Duas Causas, Quando o Mar Galgou a Terra) puderam conhecê-la.
Já não existe o Avenida, já não existe o Apolo, o Nacional que lhes sobrevive não é o mesmo de então. Nem a cidade, de que eles eram caixa de ressonância, é hoje a mesma. Mudaram os hábitos, o modo de viver e de estar na cidade. O convívio nos cafés, nos camarins dos teatros, durante e após o espectáculo, que se prolongava depois pela noite fora, nos bares e nos dancings da capital, até ao cacau da Ribeira, já de madrugada, tudo isso pertence a um tempo que já não é aquele em que estamos.
Pior? Melhor? Outro.
Não me considero passadista -como não aceitar que a evolução é uma lei inelutável e necessária da vida? Mas tenho pena. Sim, tenho muita pena.
E, por momentos, foi-me grato, por mercê de um velho cartão de convite e de um velho diploma de licenciatura, voltar a esse tempo. Ou trazê-lo até mim