A peça apresenta o monólogo trágico-cómico de um banqueiro que põe a sua identidade radicalmente em causa, despojando-se do seu nome, história, família e personalidade, num caminho vertiginoso entre a loucura e a liberdade. Depois de Leiria, Caldas da Rainha e Lamego, o espetáculo estará no Teatro Tivoli, em Lisboa, de 28 a 30.
JL: Quem é esta personagem, Vitangelo Moscarda?
Virgílio Castelo: É um homem à procura da sua identidade. Tudo começa com uma coisa fortuita: ele está a olhar para o espelho e a mulher pergunta-lhe o que está fazer, ao que Moscarda responde ‘Estou a olhar para o espelho, dói-me o nariz’, e ela diz ‘Julguei que estavas a ver para que lado o nariz te pende’. Este comentário desencadeia uma reflexão sobre a multiplicidade do ‘eu’, pois a personagem pensa ‘Se a minha mulher olha para mim e vê uma coisa que eu não vejo, então, o que julgo ser não é aquilo que os outros veem’. Geralmente, os textos de Pirandello abordam a questão da identidade e, no caso deste, penso que a escolha de um banqueiro não foi casual. Parece-me que o autor quis pegar numa figura de grande importância, e transformá-la no exemplo de alguém que abdica de tudo para procurar a sua essência. Como se nos dissesse ‘Se isto é possível com um banqueiro, que tem o peso do dinheiro e do poder, está ao alcance de todos nós’.
O tema da identidade e multiplicidade do ‘eu’ tem muito a ver com o próprio Teatro…
Sem dúvida. Nomeadamente, com a capacidade do ator de acumular máscaras. Embora aqui o processo seja inverso, pois há alguém que retira todas as máscaras, despoja-se dos bens materiais e afetivos. Se fosse um ator ficaria nu. Eu e o Nelson [Monforte] estávamos à procura de textos para um monólogo, porque o objetivo era criar um espetáculo transportável. Primeiro, ele propôs-me textos russos, que eram muito bonitos, mas demasiado pesados para o momento atual. Depois, como queria trabalhar um texto, simultaneamente, bom e com alguma leveza, escolhemos este, que apesar de complexo do ponto de vista da escrita e das ideias, é acessível e universal em termos de receção. Tem sido curioso encontrar no público desde o entendido em Pirandello, que vive na província e vai ver se isto é mesmo uma coisa dele, até à senhora que não o conhece, mas diz ‘Ah, isto é o que pensamos antes de adormecer’.
Qual a importância de refletir sobre esta questão?
De entre as formas artísticas, o teatro é daquelas que pode entrar mais facilmente em diálogo e discussão com a realidade circunstante. Sempre foi assim. No entanto, atualmente, tanto o teatro quanto a literatura perderam um pouco essa dimensão de refletir sobre a vida, em favor do entretenimento ‘puro e duro’. Além disso, preocupamo-nos mais se aquele ator ou escritor tem um estilo diferente do que se o seu trabalho nos faz pensar. E esta peça fá-lo. Numa sociedade onde tudo é mediatizado e em que nos preocupamos demasiado com o acessório, faz todo o sentido refletir sobre a questão da identidade e procurar compreender o que é essencial em nós.
Passados 36 anos de trabalho, sente-se cem mil?
De certa forma, sim. Mas isso tem a ver com a minha natureza, desde miúdo que não me revejo em apenas uma coisa. Tive a sorte de ser ator, o que me permite mudar de pele sem prejudicar ninguém. Por outro lado, o ator vai acumulando personagens numa espécie de pasta virtual, pois todas as que fiz não me pesam.