O neurologista João Durães fala à VISÃO de como o projeto “Perturbação do ritmo circadiano: um alvo para intervenção personalizada nas demências neurodegenerativas” pode trazer alguma esperança de, no futuro, os doentes com doença de Alzheimer ou Demência com Corpos de Lewyk, verem atenuados o sofrimento e o impacto que estas condições têm nas suas vidas. Este investigador foi distinguido no âmbito dos prémios da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) de 2020, dos quais a VISÃO é parceira de média.
Ao longo da entrevista, João Durães fala do objetivo de desenvolver um tratamento personalizado, baseado no ritmo circadiano de cada doente. Descreve ainda como vai “utilizar o conhecimento do perfil de ritmo circadiano e da expressão dos genes relógio, em cada doente, para o respetivo tratamento a aplicar-lhe”. A ideia é disponibilizar aos doentes e seus cuidadores “um método económico e fácil de utilizar, em casa ou em instituições, para melhorar as alterações comportamentais, possibilitando significativos benefícios pessoais, familiares, sociais e económicos”, resume João Durães. Adverte, contudo, que esta nova abordagem terapêutica ainda pode demorar algum tempo até estar disponível.
Em que consiste o projeto “Perturbação do ritmo circadiano: um alvo para intervenção personalizada nas demências neurodegenerativas” que coordena e foi distinguido com o Prémio João Lobo Antunes?
Este projeto resulta da colaboração entre o Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e o grupo de investigação “Neuroendocrinologia e Envelhecimento” do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Recorrendo à experiência de um grupo multidisciplinar, incluindo neurologistas, neuropsicólogos e uma equipa de investigação básica com experiência na área da cronobiologia, este estudo tem potencial para desenvolver um tratamento personalizado para doentes com demência. Isto é, pode permitir um método económico e fácil de utilizar (em casa ou em instituições) para melhorar as alterações comportamentais, permitindo significativos benefícios pessoais, familiares, sociais e económicos.
Pretende, por isso, desenvolver um tratamento personalizado baseado no ritmo circadiano de cada doente?
No nosso projeto pretendemos investigar, de forma abrangente, os padrões de ritmo circadiano em doentes com doença de Alzheimer ou Demência com Corpos de Lewy, delineando também uma intervenção baseada nos perfis individuais encontrados. Trata-se de um estudo translacional, ou seja, realizado entre o laboratório e a clínica, no qual os conhecimentos da ciência fundamental e da investigação clínica se reforçam mutuamente. Por exemplo, os dados genéticos e moleculares identificados nos doentes servirão, em última análise, para propor tratamentos para as doenças.
O conceito de medicina personalizada tem ganho cada vez mais importância com os recentes avanços no campo da genética. Neste estudo vamos utilizar o conhecimento do perfil de ritmo circadiano e da expressão dos genes relógio em cada doente para o tratamento que lhe será aplicado. Os resultados do projeto poderão apoiar o avanço da área da medicina individualizada baseada em estudos genéticos.
O que são ritmos circadianos ?
Os ritmos circadianos são os relógios biológicos que regulam o nosso organismo, através de ciclos fisiológicos e comportamentais auto-sustentados, como por exemplo, os ritmos de atividade, de sono, de metabolismo, de temperatura corporal ou de produção hormonal. Estes ritmos apresentam uma periodicidade de aproximadamente 24 horas e são condicionados por estímulos externos, sendo a luz o principal.
Apesar de serem processos conhecidos há séculos, os ritmos circadianos viram o seu interesse aumentar com a descoberta dos mecanismos genéticos que regulam o seu funcionamento. O Prémio Nobel da Medicina 2017 foi atribuído a um trio de investigadores americanos que utilizou moscas da fruta como modelo para isolar o gene responsável por controlar o ritmo biológico diário e para compreender a função da proteína codificada por este gene. Recentemente, também foi revelado que o restabelecimento eficaz do ritmo circadiano pode ter um impacto positivo relevante em doenças, como por exemplo a depressão. Outra área importante de investigação é a possível eficácia de certas medicações variar de acordo com um perfil circadiano, ou seja, com a administração a horas específicas durante o dia. São exemplos as horas de administração de tratamentos para a hipertensão, as doenças inflamatórias ou cancro. No entanto, o impacto destas descobertas nas doenças neurodegenerativas ainda não foi investigado detalhadamente.
É por isso que a sua equipa vai estudar os padrões de ritmo circadiano?
Já existem terapêuticas baseadas em intervenção no ritmo circadiano. No entanto, ainda falta conhecimento científico para a sua aplicação individualizada e para o seu efeito nos mecanismos genéticos do ritmo circadiano. São esperados resultados deste projeto dentro de três anos, o que nos permitirá compreender melhor a verdadeira utilidade destas terapias.
Como é que vai desenvolver o projeto?
Vamos aproveitar a significativa experiência dos grupos de investigação deste projeto nas respetivas áreas para integrar os achados clínicos e laboratoriais. Depois vamos recrutar pessoas com doença de Alzheimer ou Demência com Corpos de Lewy – as duas causas mais frequentes de demência neurodegenerativa – e proceder a colheitas de sangue periodicamente, durante 24 horas. Também vamos realizar actigrafia que é uma técnica que recorre à utilização de um aparelho semelhante a um relógio de pulso para obter informações relativamente aos padrões de atividade, sono e temperatura. Posteriormente e já em laboratório, vamos determinar o perfil diário hormonal e da atividade dos genes relógio que são genes com capacidade de regular ritmos circadianos.
Quais são, então, as etapas deste projeto? E terá depois aplicação clínica?
Este projeto é constituído por duas fases: uma primeira de investigação para estudar o ritmo circadiano em doentes com doença de Alzheimer ou de Demência com Corpos de Lewy; e uma segunda fase para avaliar a eficácia de um plano de tratamento nas alterações comportamentais, qualidade de sono, função cognitiva, impacto no cuidador e utilização de recursos de saúde nestes doentes. O trabalho tem uma componente clínica e outra laboratorial, e o seu principal objetivo é a aplicação clínica dos achados, com um estudo da eficácia do tratamento baseado no ritmo circadiano.
O que é que esta investigação pode trazer de novo para melhorar a vida destes doentes?
As alterações comportamentais e do sono afetam aproximadamente 90% dos doentes com demência ao longo da sua doença. São exemplos destas alterações a agitação, a apatia, a insónia, as alucinações, a depressão e as alterações do apetite. Estes sintomas são um dos principais motivos de desgaste dos cuidadores, institucionalização e perturbação no domicílio e nas instituições. A sua gestão atual é complexa, realçando a necessidade de terapêuticas inovadoras e seguras. Por isso, a demonstração de uma melhoria das alterações comportamentais e do sono nestes doentes, que é o principal objetivo do estudo, pode levar a uma melhoria da qualidade de vida nos doentes e nos cuidadores.
Porque é que a sua equipa decidiu estudar as doenças neurodegenerativas?
As doenças neurodegenerativas são uma das principais causas globais de dependência, com um significativo impacto negativo nos doentes, suas famílias, comunidades e serviços de saúde. Um relatório de 2016 reportou uma estimativa de 43,8 milhões de indivíduos com um diagnóstico de demência no mundo, sendo globalmente a quinta causa de morte. Os custos estimados associados à demência aproximaram-se dos 604 biliões de dólares em 2010, dos quais 121 biliões de euros relativos apenas ao impacto nos cuidadores informais.
A doença de Alzheimer é a causa mais comum de demência, caracterizada pela perda progressiva de memória e de capacidade cognitiva, e alterações de comportamento. Já a Demência com Corpos de Lewy é a segunda causa mais comum de demência neurodegenerativa, caracterizada clinicamente por flutuações da capacidade cognitiva e de comportamento, alucinações visuais, alterações do sono e parkinsonismo. Quase toda a população já contactou ou contactará com algum doente com doença neurodegenerativa, compreendendo a necessidade de tratamentos que permitam melhorar as alterações comportamentais.
Mas refere a importância de novas abordagens terapêuticas?
Atualmente, ainda não foram aprovadas terapêuticas capazes de modificar o prognóstico nestas doenças, realçando a importância de diferentes tipos de abordagens terapêuticas. Estas doenças têm uma longa tradição de investigação. Existe um pólo de estudo importante em Coimbra, incluindo o Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que inclui uma consulta de demência com mais de 15 anos e um laboratório de referência nacional para a pesquisa de biomarcadores de demência. Além do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, responsável por projetos vencedores de vários prémios nacionais e internacionais, incluindo a área da cronobiologia. Portanto, o nosso projeto alia o interesse pessoal pela área a uma estrutura experiente, reconhecida e motivada para tentar melhorar a qualidade de vida destes doentes e seus cuidadores.
PRÉMIOS SANTA CASA NA ÁREA DAS NEUROCIÊNCIAS
Prémio Mantero Belard
Criado em 2013
Distingue a investigação científica ou clínica no âmbito das doenças neurodegenerativas, associadas ao envelhecimento, como Parkinson e Alzheimer, que possibilite o surgimento de novas estratégias no tratamento e restabelecimento das funções neurológicas.
Valor: 200 mil euros
Prémio Melo e Castro
Criado em 2013
Promove a descoberta de soluções para a reabilitação de lesões vertebromedulares de natureza traumática e não traumática (adquiridas ou congénitas).
Valor: 200 mil euros
Prémio João Lobo Antunes
Criado em 2017
Foi concebido como homenagem ao médico, neurocirurgião e cientista. Destina-se a licenciados em Medicina, em regime de internato médico, e visa estimular a cultura científica e a investigação clínica na área das Neurociências, sem esquecer o princípio de João Lobo Antunes relativo à humanização do ato médico, “os seus pacientes e as suas histórias”.
Valor: 40 mil euros
Saiba mais sobre os prémios Santa Casa na área das neurociências.