Anne Applebaum estará em Portugal na próxima semana, para participar nas Conferências do Estoril. Falará sobre A Crise da Democracia: do medo à esperança? É justamente isso – esperança – que não se encontra nas suas palavras à VISÃO, nesta entrevista realizada por email.
A Europa está a retroceder, em termos de direitos, valores e princípios democráticos?
Não me parece que toda a Europa esteja a retroceder, mas é verdade que, em vários países, os partidos que estão no poder (ou que partilham o poder) questionam valores e direitos fundamentais. A Hungria já não é uma democracia, é um Estado de partido único. Na Polónia, o partido do Governo está a pressionar os tribunais, os média e a comunidade empresarial de maneira a assegurar que nunca mais perde o poder. Em Itália e na Áustria, existem membros de coligações governantes com ligações a grupos de extrema-direita que também põem em causa princípios básicos, como a liberdade de imprensa e a proteção das minorias. Partidos semelhantes fazem parte do sistema político em França, na Alemanha, na Eslováquia, na República Checa, na Roménia, na Estónia…
As eleições europeias deste mês vão ser um barómetro do crescimento dos partidos populistas?
Pela primeira vez, vamos ter eleições europeias com temas continentais e com significado para todo o continente. E, ironicamente, isso ocorre porque, este ano, os antieuropeus – os políticos que querem varrer as instituições de uma vez só – estão a trabalhar juntos, através das linhas nacionais, para alcançarem objetivos comuns. Há muitas outras questões em jogo e muitas tendências às quais devemos estar atentos (também devemos esperar um aumento no apoio dos partidos verdes), mas este é de facto um novo desenvolvimento: um “grupo internacional de nacionalistas”.
Como, em seu entender, com cidadãos mais educados e informados, o populismo cresce?
As pessoas estão realmente informadas? Estamos a afundar-nos em informação, mas isso não é necessariamente a mesma coisa que estar informado: as pessoas veem notícias sobre celebridades, notícias desportivas e notícias políticas, tudo nos mesmos formatos, nos seus telefones. E não têm muita noção do que é e não é importante. Se obtiverem a informação através das redes sociais, provavelmente, só vão ver o que o algoritmo pensa que eles gostam e, portanto, a informação é tendenciosa. Além disso, como somos educados? Na maioria dos países, as pessoas não estudam História nem aprendem muito sobre civismo ou direito constitucional. Por isso, não lhes é muito fácil serem cidadãos ativos.
Como vai a democracia prevalecer?
É uma questão demasiado complicada para responder de forma breve. Existem muitas respostas: mais ativismo, melhor educação cívica, políticas que produzam mais igualdade. A democracia é um sistema muito delicado, é fácil de quebrar, difícil de consertar.
Qual é o papel dos média?
Depende do que se entende por média. O jornalismo tradicional está em crise, o seu modelo de negócio deixou de funcionar, e em muitos países europeus o jornalismo já não constitui o fórum mais importante para o debate político-económico. Em vez disso, muitas democracias estão profundamente polarizadas, as pessoas nem sequer estão de acordo sobre quais são os assuntos mais importantes. Não confiam nos média tradicionais, nos partidos políticos tradicionais ou até nas instituições do Estado.
Que influência tem a Rússia neste quadro europeu?
Nos últimos anos, a Rússia tem procurado usar as fraquezas da nova rede de informação para promover partidos antieuropeus e anti-NATO da extrema-direita e, às vezes, da extrema-esquerda. O apoio da Rússia vem sob a forma de acordos secretos e corruptos ou, então, toma a forma de operações de desinformação online. Muitas vezes, porém, esse apoio não está oculto: existe um apoio russo claro e aberto à Frente Nacional de Marine Le Pen, em França, à AfD, na Alemanha, à Liga de Salvini, em Itália, ao partido de Viktor Orbán, na Hungria, entre outros. As ligações entre a Rússia e a extrema-direita europeia são agora muito públicas.
O que pensa sobre o Brexit?
O Brexit foi o produto de uma campanha de referendo profundamente desonesta, assim como o produto de 20 anos de ataques dos tabloides britânicos à “Europa”. Também foi um voto em algo desconhecido: ninguém sabia exatamente o que significava deixar a União Europeia e qual seria a nova relação com a Europa. O impacto do referendo acabou por ser incrivelmente fraturante: nenhum dos partidos principais conseguiu chegar a acordo sobre o que vem a seguir. O sistema político britânico desacreditou-se a si próprio por longos anos.
Depois de Trump, o que esperar?
Trump causou enormes danos à democracia norte-americana bem como à posição dos Estados Unidos da América no exterior. Mas eu não contaria com o próximo Presidente para nos levar de volta ao ponto onde estávamos. A presidência de Trump reforçou os isolacionistas, que continuarão a pressionar para remover os EUA de todas as alianças, incluindo a NATO. A Europa deve começar a preparar-se para a possibilidade de um mundo pós-americano.
Na London School of Economics, é responsável pelo programa Arena. De que se trata?
Fazemos investigação, analisamos a forma como funciona a desinformação (acompanhamos a Rússia e outras campanhas internacionais durante as eleições) e experimentamos soluções. Também integramos o debate sobre a regulamentação da internet no Reino Unido. Trabalhámos com o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e com vários comités europeus e transatlânticos que estão a começar a entender a necessidade de regulamentar essa gigantesca nova rede.
Quando fala de “propaganda do século XXI” está a referir-se às fake news?
Não gosto da expressão fake news. Estamos a falar de todo um sistema de táticas, desde pessoas que usam contas falsas nas redes sociais e amplificação falsa até outras que, de propósito, criam histórias ou narrativas falsas. Este sistema envolve bots computadorizados, trolls pagos, pessoas que criam páginas e sites fraudulentos nas redes sociais, equipas que tentam recrutar e radicalizar pessoas online. Agora, a desinformação criada deliberadamente existe em todas as línguas usadas na internet.
Qual é a diferença entre a propaganda do século XX e a do século XXI?
A principal diferença reside, sobretudo, na facilidade com que uma pessoa pode criar fontes alternativas de informação falsa, usando-a para alcançar milhões de pessoas muito rapidamente.
B.I.
Anne Applebaum nasceu em 1964, em Washington, EUA
Jornalismo
É colunista e membro do conselho editorial do Washington Post
Livros
Cobriu o fim do comunismo e, em 2004, com o livro Gulag, venceu o Prémio Pulitzer
Professora
Na London School of Economics, é responsável pelo programa Arena, sobre desinformação e propaganda do século XXI
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