Perguntar a um americano intranquilo as “razões para gostarmos de nós”, portugueses, tema desta sessão, poderia ter parecido um diagnóstico de eventual distúrbio de personalidade. Mas isso é só para os mais distraídos: o escritor Richard Zimmler trocou a sua Nova Iorque natal pelo Porto há já 28 anos. E tal como a lisboeta Ana Bacalhau, cantora dos Deolinda (que, diz ela, estão a “dar um tempo”), ele é capaz de alinhavar as manias lusitanas como se tivesse um bem popular Silva na certidão de nascimento.
Mas não houve espaço para traumas nesta análise coletiva, lançada pelo moderador, e editor de cultura da VISÃO, Pedro Dias de Almeida. Mesmo que a conversa tenha começado, por exemplo, com a convivência nem sempre fácil da cantora com tal apelido tão português. “O meu nome é Bacalhau, é mesmo de família. O meu pai ainda não deu a volta, prefere assinar Costa…”, conta Ana. A “sensação de vergonha”, disse apareceu depois: “Não há Suíças no recreio da escola…” Na adolescência, a pensar em ser artista, percebeu que a “singularidade” ia dar-lhe jeito. Um orgulho português que já galgou gerações: a filha que teve com o também músico dos Deolinda, José Pedro Leitão, chama-se Luz Bacalhau Leitão.
E de gerações já é feita a experiência em portugal do americanos nascido em Nova Iorque Richard Zimmler, autor de romances como O Último Cabalista de Lisboa ou o recém-editado Meia-noite ou o Princípio do Mundo, que quando chegou ao Porto, nos anos 1980, chamou à Invicta “cidade impermeável ao mundo”. “Eu pensei que era uma pessoa sofisticada: eu lia Dostoievski e Faulkner, vi todos os filmes franceses, e pensei que todos [os portugueses] pensavam o mesmo que eu”, assumiu. A realidade da cidade, muito diferente do que é hoje, concordam todos, fá-lo desfiar as frustrações da época: o discursos do português que “fala de forma serpentina”, levando tempo a explicar ao que vem, ou as atribulações de conseguir uma fita para a impressora – depois de três semanas à espera da resposta a uma carta da Apple, dizem-lhe que a loja mais perto era em Amsterdão…
Bem a propósito, o moderador há de ir buscar essa “coisa muito portuguesa”:” “Nós falamos mal do país, mas se forem outros a falar, alto lá. Sentiu essa questão de ser um americano a criticar?” “Na verdade, a parte mais difícil disso foi ser americano: tinha havido o golpe de Estado no Chile, a guerra do Vietname… Várias vezes, as pessoas me insultaram em público – e eu nunca tinha tido essa experiência difícil”, confessa o escritor. Face ao fechamento social, conta que resolveu argumentar que os EUA tinham tantas coisas positivas como negativas. O jazz, por exemplo, o grande contributo dos americanos. De volta, ouviu esta resposta: “Todos negros.” “Descobri que era ignorante e racista”, atira por entre os risos do público. É um dos momentos deste duelo criativo em que Zimmler fará o salto para a atualidade: “Louis Armstrong é tão americano como George Washington. E quem não perceber isso, não percebe nada dos americanos. É o caso de Trump.” O atual presidente dos EUA servirá para um aviso à navegação: “Num país em que mais de 50% não sabe nada de história, eles podem eleger um homem primário e racista como Trump. E se vocês pensam que não pode acontecer em outro país do mundo, estão enganados.” O calafrio na sala é assinalado…
Regresse-se à portugalidade, de que os Deolinda se transformaram em símbolo. Ana Bacalhau também os vê assim, pergunta-se. A cantora conta a sua dupla experiência: uma miúda de Benfica, que ouvia música anglo-saxónica, e que no Verão ia para uma aldeia perto de Tondela, onde havia essas casas antigas aquecidas pelos animais, que ficavam no andar debaixo. “Sempre tive esses dois mundos.” Deolinda, a banda que formou com o marido e os primos, Luís Jorge Martins e Pedro da Silva Martins, que tinha dentro um personagem – “essa senhora solteira, 40 anos, com os seus peixinhos e gatos, e que olhava os outros da sua janela” – era, conta, “o retrato de Portugal em 2008”.
Salto no tempo para 2011, e ao tema da banda que se tornou viral e chegou à Assembleia da República: Parva que eu Sou. Regresso da canção de intervenção? Ana Bacalhau, que chegou a trabalhar na administração pública, conta que não conseguiu ser irónica a cantar essa música que falava das dificuldades dos mais novos (“Que mundo tão parvo/Que para ser escravo é preciso estudar”), e que se tornou viral, chegando até ao parlamento. Um “circo político “ que incomodou a banda. “Na nossa cabeça, não era um hino político, eu estava a cantar para as minhas antigas chefias”, garante, sempre despachada.
Ah, a burocracia… Pedro Dias de Almeida cita Movimento Perpétuo Associativo, outra música dos Deolinda para ilustrar essa outra mania portuguesa: “Agora não, que é hora do almoço…/Agora não, que é hora do jantar…/Agora não, que eu acho que não posso…/Amanhã vou trabalhar…”
É a deixa para outro momento lost in translation vivido por Richard Zimmler: “Eu descobri que em Portugal não podia trabalhar em equipa. Num grupo, havia sempre duas pessoas que metiam água…” O escritor faz o seu próprio diagnóstico logo a seguir, assumindo que não é “control freak,”, mas que quando se envolve num projeto, tem que ser “maravilhoso”: “Eu sou algo ansioso. Quando tenho um prazo para 1 de maio, já terminei o trabalho a 20 de abril. O português é ao contrário!”
Outro salto temporal: depois da portugalidade passada, como se vive agora “a fase da euforia”, pergunta Pedro Dias de Almeida. Zimmler vai buscar a anedota do “senhor do PSD” que inventou um grau académico e “uma universidade que não existe”: “É espetacular, eu dou dez pontos a isto! Nos EUA, há também vigaristas. O presidente é um vigarista, mas ninguém vai inventar um grau académico, uma universidade estrangeira que não existe.” O escritor fará, de seguida, o elogio à realidade portuguesa, mas descontando a economia e a política: os artistas, esses sim, estão bons e recomendam-se. O moderador pergunta se o traço de inferioridade não faz com que os portugueses se esforcem por chegar ao outro. Richard Zimmler partilha uma anedota agridoce: ao chegar a Portugal, tentava sempre falar português mas que o tratavam mal: “Eles pensavam: qualquer estrangeiro que tente falar português, deve ser uma merda! Aprendi que, nos lugares mais importantes, eu falo inglês porque eles me tratam muito melhor.” Remata com parabéns ao bom inglês que os portugueses falam: “Mostra uma generosidade de espírito espetacular.”
E as últimas vitórias, o Campeonato da Europa de futebol, o Festival da Eurovisão, já nos subiu à cabeça? “Nós somos completamente polarizados, a objetividade não é um traço nosso…”, diz, sincera, Ana Bacalhau. “Borbulhamos por dentro, mas temos vergonha de mostrar que borbulhamos por dentro. Houve alguma reconciliação dos portugueses, temos menos vergonha de nos reconciliarmos com a nossa portugalidade.” E conta uma história edificante: num concerto na Holanda, os Deolinda deram por um senhor baixinho, gordinho, de bigode e bandeira portuguesa às costas, e quiseram saber há quanto tempo vivia naquele país. A resposta, bem enfática, veio assim: “Eu sou holandês, mas sinto-me português!” E a cantora sublinhará uma velha questão: “Isso é muito português, ganharmos confiança porque o outro gosta de nós. É uma falta de estima…”
Uma conversa sobre razões para gostarmos de nós vai ter, claro, ao espelho do turismo, esse barómetro da relação com outro – ou com milhares de outros. “Quando nos tentamos adaptar a outra cultura, ficamos com mais dúvidas sobre o que pensamos. Começamos a questionar os nossos pressupostos. Eu estou uma pessoa mais rica, cosmopolita, abrangente”, declara Richard Zimmler. Ana Bacalhau lembrou a sua experiência a trabalhar no Ministério das Finanças e a Lisboa que, à noite, então se esvaziava. E que, hoje, é bom “ter pessoas tão felizes a viverem em Lisboa ou no Porto, e a gabarem-nos”, mas que é preciso cuidado para que Lisboa não seja “um gueto turístico” e que, nas casas, a D. Pancrácia não seja substituída por um Wilhelm.
E porque todas as sessões, mesmo as de psicanálise coletiva, também têm uma duração, ao moderador fazem sinais de que a conversa vai longa. Venha de lá a citação dos Deolinda que tão bem ilustra (ainda) o ser português: “Podem ir saindo, nós já vamos lá ter…”