Nelson Mandela atinge o poder aos 75 anos. Um ancião sem sucessor representa a última esperança de futuro. E a África do Sul no seu ponto de não retorno, no último dia de eleições. Mas é agora que o período mais crítico se anuncia
Termina hoje, quinta-feira, a maratona eleitoral sul-africana. Três dias de votos livres e multirraciais mudarão a história do último país africano governado por uma minoria branca. Nunca um resultado foi tão previsível. O ANC de Nelson Mandela formará o próximo governo. O líder histórico da luta contra o apartheid, que ficou 27 anos na prisão, é o novo homem forte e o futuro presidente da África do Sul. Sem sucessor à vista, reside na sua longevidade física e política a última esperança para o país mais desenvolvido — e único do primeiro mundo — do Continente Negro.
Também nunca umas eleições decorreram em cima de um tão perigoso barril de pólvora. Um carro armadilhado com 70 quilos de explosivo comercial marcou, domingo de manhã, no centro de Joanesburgo, o início de uma série de atentados que provocaram dezenas de mortos e feridos. A bomba, colocada a meio caminho entre a sede regional e os escritórios centrais do ANC, fez estilhaçar todos os vidros num raio de duas centenas de metros, tendo destruído vários carros e provocado nove mortos.
O abalo provocado fez tremer todos os edifícios num raio de várias centenas de metros. Os transeuntes foram projectados no ar, surpreendidos pelo tornado do sopro da bomba. Os vidros do restaurante do hotel onde nos encontramos, que são à prova de bala, dobraram, inchando como foles. As pessoas que enchiam a sala do pequeno-almoço atiraram-se para o chão e depois fugiram espavoridas.
Quando chegámos ao local da detonação, um minuto depois, ainda se viam populares a correr em todas as direcções que os afastassem dali. Alguns policias já serpenteavam, de arma na mão, entre corpos mutilados. Nove mortos e mais de 100 feridos banharam a rua de sangue.
Numa volta a três quarteirões vizinhos, os pés esmagavam a alcatifa de vidros partidos, enquanto, no local da explosão, ainda as chamas lambiam os destroços. Os feridos que se arrastavam no alcatrão da Jeepe Street já não tinham forças para gritar. Choravam em silêncio.
Um elemento da força de intervenção no local disse à VISÃO que só a apertada vigilância impediu que o atentado se registasse mais próximo do ANC. No momento em que estas declarações eram prestadas, um pelotão da polícia surgia de uma esquina próxima, em passo de corrida, dando ordens para que as pessoas se afastassem, porque havia uma segunda bomba. Apesar de não se ter confirmado qualquer detonação, registaram-se alguns momentos de pânico.
Algumas horas depois, ao cair da noite, a polícia e o exército bloquearam todas as artérias do centro. Os sapadores da SADF (forças armadas) fizeram explodir um automóvel suspeito, a 250 metros da Shell House, como é conhecido o edifício central do partido de Nelson Mandela. Os principais hotéis do centro da cidade, o Holiday Inn (onde estamos instalado) e o Carlton, foram rodeados de medidas de segurança extraordinárias, já que albergam centenas de observadores internacionais e se tomaram alvos prováveis para os bombistas. A polícia chegou a colocar a hipótese de evacuar o primeiro, um edifício com cerca de 50 andares.
Germiston (onde há muitos portugueses), Boksburg e Randfontein, cidades satélites de Joanesburgo, foram alguns dos alvos do princípio da semana. Pelo menos uma dúzia de bombas de alta e média potência explodiram em locais diversos na zona do PWV (província de Joanesburgo). Ninguém reivindicou os atentados, embora haja suspeitas de que a extrema-direita de Terreblanche está por detrás destas explosões. No entanto, o seu partido, o AWB, declinou responsabilidades.
DEAD LINE DA PAZ Um responsável da SAP (polícia sul-africana) no Kwazulu-Natal, o major Bala Naidoo, disse à VISÃO, em Durban, que a violência política naquela província baixou, após o acordo entre Frederik de Klerk, Nelson Mandela e Mangosuthu Buthelezi, firmado a semana passada em Pretória. O Estado-Maior das Forças Armadas em Durban situa-se frente à praia, onde chusmas de surfistas brancos ondeiam ao lado do clima de guerra. A capital do Kwazulu–Natal respira tranquilidade, mas toda a província se encontra ainda a ferro e fogo. Izingolweni, Kwa Mashu, Ndwedne, Epagheni e Nsselini são os nomes zulus da violência: townships a pontuar as imensas plantações de cana-de-açúcar, estas cidades tornaram-se campos de batalha entre partidários do ANC e do IFP (Inkatha), partido zulu de Buthelezi. Os assassinatos perpetrados em Unlundi, terra natal de Buthelezi, que vitimaram três distribuidores de propaganda do ANC, instalaram a desconfiança entre o virtual vencedor destas eleições e as forças de segurança do país; uma das vítimas terá sido atingida pela polícia. O major Bala Naidoo afirma que o período mais crítico pode surgir quando forem anunciados os resultados eleitorais. «Se a guerra civil não estalar até dia 5 de Maio, teremos a situação controlada», afirma. Uma deadline que definirá o futuro próximo da Áfricas Austral .
INSEGURANÇA TOTAL Após os comícios finais de campanha, no último fim-de-semana, dois obstáculos permaneciam: as ameaças de violência da extrema-direita branca, por um lado, e a alegada impreparação da Comissão Eleitoral Independente (IEC) para conduzir o processo eleitoral, pelo outro. Cerca de 83 mil polícias especialmente treinados guardam as mesas de voto. Perto de 70 companhias do exército «asseguram a ordem em todo o país», disse à VISAO uma fonte militar. Ninguém pode aproximar-se das mesas, a não ser para exercer o direito eleitoral. Os jornalistas só estão autorizados a visitar os locais onde votam os líderes. Três níveis de segurança, a 100, 600 e 1 200 metros estão montados.
Não existem cadernos eleitorais, pelo que se esperam transferências de eleitores entre regiões, conforme as conveniências partidárias. Qualquer um pode votar onde quiser, mas ninguém o fará mais do que uma vez, graças a um sistema de deteção computorizado que liga as mesas eleitorais.
Um acordo que prevê a instalação do chamado Volkstaad, um estado controlado por brancos, foi firmado, in extremis, no sábado, pouco antes do último comício do ANC no Soweto e na véspera do primeiro atentado em Joanesburgo. As negociações para a autodeterminação do povo africânder continuam após as eleições e serão mediadas por britânicos, suíços e belgas. O acordo foi assinado pelo ministro Roelf Meyer, pelo general Viljoen da Freedom Front, um partido que representa, nas urnas, a extrema-direita sul-africana, e pelo representante do ANC, Thabo Mkebi. Mas não foram definidas quaisquer futuras fronteiras e as fontes contactas pela VISAO em Joanesburgo são unânimes em afirmar que a autodeterminação africânder será mais um compromisso cultural do que uma concessão territorial.
Seja como for, a África do Sul parece encaminhar-se para uma solução do tipo federativo, prevista na mais recente emenda da Constituição, após o reconhecimento da monarquia zulu. Nelson Mandela, no entanto, tem mantido um discurso centralizador, que está a provocar tensão entre as minorias.
A fronteira entre a paz e a guerra civil, nos próximos seis dias, depende do comportamento não só das populações e dos partidos, como das forças de segurança. O período que antecedeu as eleições caracterizou-se pela inabilidade política do ANC e do governo, que pouco fizeram para impedir os sangrentos acontecimentos registados nas townships. A constituição da NPKF (Força Nacional de Manutenção da Paz) foi entendida como um ataque directo ao partido do Inkatha. Os soldados azuis da Peace Keeping são, na sua maioria, controlados pelo ANC e a sua intervenção nas batalhas das townships revelou-se desastrosa.
A debilidade das forças de segurança não fica por aqui. Não há um, mas sim vários exércitos. O briefing matinal entre os diversos comandos, que ocorre em cada província, de pouco adianta. A coordenação entre as várias forças é pesada e ineficaz. Exército (SADF) polícia (SAP), força de paz (NPKF) e força especial (ISU) dividem áreas e missões, na mais completa confusão. Pelo meio, as forças da ordem têm de se haver com uma população armada até aos dentes e de dedo leve no gatilho.
O mistério zulu
Ele foi comparado a Savimbi e teme-se que reaja, depois das eleições, como actuou o líder da UNITA. A VISÃO esteve com Buthelezi no coração das tribos zulus Paga-se portagem para chegar a Zululand. Em dinheiro português são 80 escudos para se entrar na estrada que conduz ao local onde está a corte do rei zulu Zwelithini, descendente de Shaka e futuro monarca constitucional do Kwazulu-Natal. A N2 é a via rápida que liga Durban à terra dos zulus. Uma rede de auto-estradas atravessa a região, mas a picada africana não fica longe. Em Nsselini, township vizinha de Epagheni, onde ainda há pouco ocorriam tiros de AK-47, desfilam agora grupos de jovens zulus, armados de zagaia e escudos tradicionais. O campo de futebol, onde as ovelhas fazem de cortador de relva e duas árvores seculares invadem o relvado de erva daninha, foi o local escolhido para o primeiro comício de Buthelezi, após a reentrada na corrida eleitoral e o regresso triunfal à capital zulu de Unlundi. Eles foram chegando de aldeias vizinhas, em autocarros velhíssimos, ou a pé, marchando ao som de gritos guerreiros. Não sabem ler nem escrever, não têm água, luz ou telefone, nem emprego e precisam de roubar ou de matar para comer. Deram-lhes, agora, um direito: o de votar. Desde manhã que estão a li, à espera do líder e de outros membros da família real. Buthelezi chegará com três horas de atraso. Uma barraca foi erguida e três altifalantes amolgados, um dos quais não funciona, estão ligados a um microfone. Das 15 mil pessoas que o vieram ver, e que se sentam no chão ao longo do recinto, só cerca de 200 conseguem ouvir o que ele diz. Mas que importa? Este é o primeiro dia sem tiroteio nas ruelas da township.
Pouco simpático com Mandela, que acusa de ser comunista, o discurso do Chief Buthelezi está longe de ser apaziguador. Agressivo, incita os seus apoiantes a mostrarem ao país a força do Inkatha. E o erguer de lanças que pontua as suas palavras não augura nada de bom.
No final, presenteiam-no com um borrego vivo e um cobertor que lhe entregam num saco de plástico. A oferta é o manto que simboliza o poder.
A oração metodista e o cântico final servem de despedida Os canos das AK-47 estão ainda quentes, mas a hora é de celebrar com o brandir de armas tradicionais. Buthelezi mete-se à N2 e passa pela zona branca de Epagheni, onde jovens africânderes se espalham pelos relvados, treinando rugby. Meninas colegiais loiríssimas jogam hoquei em campo, indiferentes ao apelo da selva.
HOSTEL ANGOLA A sinistra expressão terceira força, sussurrada com cautela nas esquinas de Joanesburgo, define a extrema-direita, empenhada no boicote às eleições e preparada para declarar guerra contra um governo ANC. Mas a terceira força eleitoral deverá ser a do Inkatha, partido negro de direita, etnicamente identificado com os zulus. O líder Buthelezi está apostado a mostrar que o Inkatha não se resume à província de Kwazulu e, por isso, encerrou a sua campanha com um comício no Estádio de Orlando, em pleno Soweto, a poucos quilómetros de Joanesburgo.
Myeni tem 21 anos e ocupa a bancada mais aguerrida do estádio, onde os jovens do Hostel chamado «de Angola», de Tokosa, se reuniram para dar as boas-vindas a Buthelezi. O líder está atrasado, e só chegará duas horas depois do anunciado. Mas não interessa: Myeni foi um dos que chegou de manhã. A sua AK-47 juntou-se ao coro de muitas outras e disparou uma rajada para o ar, em sinal de festejo. Nem segurança nem organização. O Inkatha é um partido de pé-descalço, não dispõe de detectores de metais como o ANC e não tem forma de impedir que metade daquelas 20 mil pessoas traga armas de fogo. O exército ergueu um cinto de segurança e isolou o local do resto do Soweto, onde o ANC domina. Myeni diz à VISAO que tem imensa sorte. «O meu avô tem mais de 70 anos e nunca votou. E eu posso votar com esta idade!»
Se chegar às mesas de voto. Ele já viu morrer companheiros seus nas ruelas de Tokosa. O comício do Inkatha, marcado para o dia da primeira bomba de alta potência em Joanesburgo, próximo da sede do ANC, promete tiros. Jovens embebedam-se na bancada e o cheiro a «erva» desce ao relvado do Estádio de Orlando. Mas são os do Hostel a que pertence Myeni os que cantam mais alto. Têm autoridade para isso. Durante duas semanas deram o seu sangue para defender a sua raça. Contra os xhosas do ANC e contra a Força Nacional de Paz, que o Inkatha acusa de estar ao serviço dos seguidores de Mandela.
Alívio: no final do comício, apenas um incidente. Três mortos em confrontos com a polícia. Nada de mais.
A hora de Mandela
O futuro é o socialismo», assegura um cartaz de Germinston, no Estádio FNB, no Soweto, onde se realiza o último comício de Nelson Mandela, na província do PWV. Cercado de dunas de entulho de minas de ouro já exaustas, o estádio comporta cerca de 60 mil pessoas, mas tem algumas clareiras. Mandela, que hoje, quinta-feira, deverá ser consagrado, nas urnas, como o novo líder da África do Sul, despediu-se de Joanesburgo com um severo puxão de orelhas aos seus apoiantes. Apesar da organização impecável e dos inúmeros controlos de segurança, efectuados por efectivos fardados e armados, às portas do Estádio, a entrada do líder é saudada com um festival de tiros para o ar, vindos de todos os recantos do recinto. Aos microfones, antes de iniciar o seu discurso, Mandela dá uma pública reprimenda à segurança e aos simpatizantes que insistem em andar armados. E acusa, perante o silêncio geral: «Há criminosos entre nós.»
Duvida -se, neste momento, que o ANC, que teve tudo na mão para ganhar por margem arrasadora, possa conseguir os desejados dois terços dos votos. E Mandela está zangado porque sabe que isso se deve à violência protagonizada pelos seus apoiantes, nas ruas. Graças a isso, o NP de Frederik de Klerk subiu a pulso, conquistando diversas fatias do eleitorado negro. O actual presidente fez uma ponta final de campanha empolgante.
Nelson Mandela repete, até à exaustão, o programa económico do ANC, que inclui a construção de milhões de fogos, a electrificação de townships inteiras e a criação de empregos. É verdade que a África do Sul tem dinheiro para tudo isso. Mas o não cumprimento das promessas arrastará o país para o caos.
FESTA RIJA O ANC anunciara o comício para as 9 e 30, mas só às duas e meia da tarde começará. Os apoiantes chegam em grupos de claques, e lentamente ocupam as bancadas. O Soweto está em festa. O entusiasmo e o nível de participação são semelhantes aos que se podiam encontrar num comício em Portugal em 1974 e 1975. A rígida organização do ANC, essa faz lembrar a de um comício do PCP.
Como no Portugal de há 20 anos, sente-se no ar o perfume do tal momento histórico que dá arrepios. Com nuances de colorido e toy-toy business, como chamam os brancos ao folclore sempre presente nas manifestações negras. Os cânticos negros erguem-se para o céu, como preces, enquanto não chega o herói Mandela. As armas de fogo estão lá, como se verá pelos disparos de festejo, mas a multidão dança e canta na alegre antecipação da vitória — e da paz. E respirando a plenos pulmões a emoção de uma liberdade completamente nova. Vem das townships miseráveis, de Alexandra, de Tokosa, do Soweto, onde não há condições de vida nem trabalho e onde se morre de tuberculose ou a tiro. É quase incompreensível a alegria incontida desta gente, mas já se entende a sua sede de sangue, quando a batalha desce ao bairro de lata.
Nelson Mandela atravessou 27 anos de masmorra para chegar aqui. De camisa escarlate e calças claras. Não poupa o principal adversário FW (De Klerk) e, habilmente, tenta captar um eleitorado que se lhe escapa por entre os dedos: o dos mestiços e asiáticos. Invoca, para isso, a religião, afirmando que, ao contrário do que diz o NP, a África do Sul não é um país cristão: «É cristão, muçulmano, hindu e judaico.» Lembra que também os mestiços e os indianos foram perseguidos pelo apartheid. Sem eles, dificilmente conseguirá os dois terços no parlamento nacional. O estádio há muito se tornou um enorme punho negro erguido. Para hoje à noite, com o fecho das urnas, está marcado o salto no escuro.