Podem ter visto o Inferno a entrar-lhes pelas vidas – que, a custo, salvaram – mas não perdem o sentido de humor. Mariana conduz-me pelos escombros da casa esventrada, plantada no que já foi um dos mais bucólicos recantos entre a freguesia de Avô e a Aldeia dos Dez, e diz com um pequeno riso: “Entre. Como vê, não temos nada a esconder”. E Helder acrescenta, pensando nas fotografias: “Não devia ter feito hoje a barba…” Para dar um ar mais desafortunado?…
Nada a esconder. Nem as cubas calcinadas da adega, onde Helder fazia o vinho, nem a lareira pensada para outras fogueiras, nem a valiosa coleção de música que jamais voltará a pintalgar de outros sons os cantos dos pássaros – que também desapareceram.
Dois incêndios numa vida
Helder Correia viu, numa só vida, dois grandes incêndios de frente. Há 28 anos, tinha ele 25, foi em Cepos, na Serra do Açor, onde se refugiara por gosto pelas coisas da Natureza. Nado e criado em Vale do Paraíso, entre Aveiras de Baixo e de Cima, no concelho da Azambuja, fez, aos 19 anos, um passeio que lhe mudou a vida. A Serra da Lousã deu-lhe o ar puro – e o vício – das terras generosas do interior, da placidez e tranquilidade do campo e da montanha. Decidiu: “É aqui que quero viver”. A mudança não correu especialmente bem, e, depois de um passeio de duas semanas a pé com dois amigos, encantou-se pela Serra do Açor e escolheu, em definitivo, o sítio de Cepos, para assentar arraiais.
Então, porque saiu de lá? “Porque ardeu tudo”, responde. Foi a primeira vez que o fogo o perseguiu. mas, então, foi diferente: “Ainda não tinha muito de meu…” Não como agora…
Depois do mundo, a montanha
Homem do mundo, e dos sete ofícios – foi cozinheiro, fotógrafo, cuidador de quintas biológicas e técnico de impermeabilização, profissão de que se fartou, antes de ir parar à Indonésia (já lá iremos) Helder andou emigrado por França, Itália, Alemanha e Holanda. “Emigrado, não é bem. Nunca fui um emigrante. Ia lá ‘fazer uns trabalhos’, durante umas temporadas”. E foi em Amesterdão que conheceu a mulher, Mariana (assim mesmo, grafado à portuguesa), uma holandesa que manteve preso o coração deste andarilho… até hoje.
Praticante de snorkeling – uma variante de mergulho -, amante da natureza e da música, agricultor por vocação (arderam-lhe as oliveiras, a vinha, a horta, os animais, exceto, miraculosamente, cinco ovelhas) acabou por se apaixonar, depois da tragédia de Cepos, por Aldeia dos Dez, concelho de Oliveira do Hospital. A atração pelo isolamento montanhês não o fez enjeitar o cosmopolitismo: das filhas, de 30, 32 e 34 anos, duas tiraram o curso de instrutoras de mergulho, uma no Vietname e outra em Moçambique. Duas vivem na Holanda e uma terceira, radicada na Nova Zelândia, está cá de visita. Veio de propósito, para ajudar, nestes dias de… brasa.
A Indonésia aqui tão longe
A profissão de impermeabilizador, que foi o seu ganha pão durante mais de duas décadas, não o seduzia. Às tantas, fartou-se. E arrancou, com Mariana, rumo à Indonésia, inscritos como voluntários numa ONG. Mas os sete meses no outro lado do mundo não os fizeram esquecer os cinco hectares escavados em socalcos, no meio da floresta destas serranias encostadas à Estrela, onde tinham vivido 12 anos sem eletricidade, até à chegada, há pouco tempo, dos preciosos cabos – e tinham resistido.
No dia 15 de outubro, a festa da castanha, e respetivo magusto, na vila de Avô, foi subitamente interrompida pelo sopro das chamas. Subiram os dois quilómetros que separava a festa da quinta e ainda tentaram preparar o combate. Mas só tiveram tempo de fugir, para salvar a vida. Pela segunda vez, Helder Correia era expulso de sua casa pelo voraz intruso fumegante. Mas, desta vez, já tinha mais “alguma coisa de seu”, incluindo a exploração de uma pensão, próximo da praia fluvial, que também foi consumida pelas chamas.
E a dúvida instalou-se: ficamos ou partimos? Partir para onde? Nos olhos da tranquila Mariana adivinha-se a resiliência. Sente-se como num filme, nunca tinha visto um cenário assim pintado de preto, o apocalipse parece feito de ficção científica. Mas os tijolos, as vigas, as telhas novas e o cimento já revolteiam pelos pátios e pelo caminho de acesso, e já há anexos, que servem de arrecadações, completamente reconstruídos. A casa virá depois, se houver ajudas. Venham elas.
Como me conta Helder, realizadores de cinema nacionais e estrangeiros já filmaram na quinta. “Quatro dias descalço”, de Ivo Costa, exibido no IndieLisboa de 2013, foi ali rodado. E agora já havia marcação para uma curta metragem. “O pessoal das filmagens ficaria na pensão e era mais uma fonte de rendimento”, diz Helder. “Agora já não vêm.”
Até podem vir. O que se passa neste cenário dispensa efeitos especiais. O argumento já está escrito. E Mariana, pode, finalmente, sentir-se dentro do seu próprio filme.
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