Umas boas galochas, um lenço na cabeça apertado debaixo do queixo e Laura Martins Barata está pronta para ir ao cimo do monte, mostrar a velha carrinha onde andou a juntar uma mancheinha de pinhas antes que a chuva chegasse. Na televisão já tinham avisado de véspera que chegaria logo de manhã e ela não se fez rogada – estreou-se com tanta força que num instante as pingas inundam-lhe os óculos e a lama faz cloch, cloch debaixo das suas botas.
Laura aperta melhor o lenço e sobe lesta connosco no seu encalço, primeiro entre couves e depois ao longo de vinhas. Chega num instante ao topo do terreno, como se não tivesse 75 anos e “ferro” nos dois joelhos, e abre orgulhosa uma porta da carrinha. “Guardei a tempo estes sacos de pinhas. Se se molhavam não ia ter nada para acender a lareira no inverno.”
A carrinha já não passa de uma carcaça queimada pelo fogo. Estava ali parada naquele terreno em Figueira (na freguesia da Graça) há uma dezena de anos, sem rodas, a fazer as vezes de armazém quando faltava espaço no pequeno barracão contíguo. No dia 17 de junho, tinha palha até cima, foi num ai que tudo se incendiou. O barracão, que era de tijolo, desmoronou-se e com ele desapareceram as batatas, as abóboras, o carrinho de mão, a moto-serra. “Foi o Diabo que aqui passou, e lá em baixo levou-me os quartinhos onde os meus filhos ficavam ao fim de semana [tem quatro]”, diz de chapéu na mão nitidamente para nos abrigar.
Chove tanto que somos os únicos fora de casa até onde alcança a vista. Laura nem liga. Está habituada a passar os dias sozinha desde que enviuvou, há quinze anos. Entretém-se com o trabalho no campo e vai tendo as suas conversetas com o Zezinho, o galo meiado de sete ou oito anos que a segue para todo o lado como se fosse um cão.
“O pior ainda não chegou”
Descemos ao telheiro onde o galo-garnisé parece pressentir a chegada da dona e desata a cantar. Laura pega-lhe ao colo e repete “pequenino, pequenino”, enquanto lhe faz festas na barbela. Guilherme Coelho, um vizinho e amigo, ri-se com tantos mimos, e acaba a entrar sem falsas cerimónias na conversa. “Esta chuva agora é uma maravilha, Laura?! Então e as enxurradas? Quando elas vierem levam as cinzas por aí a baixo e matam os peixes nas ribeiras e nas barragens. Parece impossível, mas é verdade!”
E é. Um telefonema para o engenheiro agrónomo Eugénio Sequeira confirma isso e muito mais. “O pior ainda não chegou”, vaticina o investigador aposentado, especialista na área da conservação dos solos.
A chuva já chegara a Cascais, onde mora, mas ainda não corria, era “só uma aguinha nas sarjetas”. A água vai cair a sério e o “grande drama”, lembrou, é que as precipitações estão a tornar-se cada vez mais graves. “Nunca na minha vida – e tenho 80 anos – tinha apanhado mais de 200 milímetros de precipitação por hora. E há uns três ou quatro anos medimos alguns minutos com 240, em Castro Verde.”
Agora que começou a chover, as consequências dos incêndios na zona Centro preocupam-no como nunca. “O solo foi queimado, e em especial em zonas de pinheiros e eucaliptos, misturados com mato mal gerido, a temperatura da terra foi aos mil graus. A terra ficou hidrófoba, ou seja a água não entra. Quem se lembra dos termómetros com mercúrio sabe que, quando eles se partiam, as bolinhas não entravam nem nos tecidos. É assim com a água: num solo com uma temperatura que esteve a mais de 400 graus, ela não entra e arrasta as cinzas.”
O “coeficiente do cagaço”
As folhas de eucalipto guardam no seu interior quase todo o fósforo, o cálcio, o potássio e o magnésio, e isso tudo é levado. E como ainda por cima se mexeu na terra (as pessoas querem vender as madeiras de cima a baixo e fazem regos quando tiram os tocos), cada rego é uma ravina e a terra vai por ali a baixo, ensina o investigador. “E para onde isso vai? Para as barragens. E o que acontece às barragens? Desenvolvem-se as algas, forma-se metano e, por causa da carência de oxigénio, os peixes morrem. E repare que o problema não é só o efeito do CO2 da floresta ardida. Há perda de capacidade de fixar CO2 porque há perda de fertilidade por haver emissão de metano nas barragens. Uma molécula de metano vale por 5 por 1 de CO2 na atmosfera em termos de efeito de estufa. O problema não é agora, é no futuro. Está a ver as emissões de gases das vacas? As barragens, assim, são milhões de vacas e sem produzirem nada.”
Para evitar isto é preciso reter a água e fazer aquilo que os americanos fazem, defende Eugénio Sequeira, com valas de nível, que nunca são galgadas, para transportar a água. “Mede-se a chuvada máxima previsível durante um dia. Conforme a inclinação, sabe-se a quantidade de água que fica armazenada num buraco com cerca de 40 cm e fazem-se as contas para ver quanta dela será absorvida. E nas linhas secundárias, com os paus queimados ou com pedras, faz-se um muro com 70 cm, roto, para a água correr devagarinho. Ela vai-se infiltrando nestas linhas e depositando cinzas. Lá no fundo, no vale, não chegará quase nenhuma terra nem cinza.”
Este especialista em solos fez isso na serra de S. Mamede e em Nisa, a seguir aos fogos de 2003. Recentemente, enviou um relatório ao Presidente da República, carregado de dados que não deixam margem para dúvidas sobre o que deve ser feito agora na região Centro. Mesmo assim, os dados relativos aos níveis de precipitação têm de ser atualizados, nota, ou então “se as pessoas tiverem juízo, que façam aquilo que os engenheiros fazem quando projetam uma barragem: no final, acrescentam-lhe o ‘coeficiente de cagaço’ porque estamos em alterações climáticas”.
Ambientalista convicto, Eugénio Sequeira não se cansa de explicar tudo isto, as vezes que forem precisas. “Faz-me muita confusão que nunca se fale na degradação do solo e da água e da perda de biodiversidade”, confessa. “Assim, não há nenhuma vegetação espontânea ou bichos que se safem.”
Laura Martins Barata, 75 anos
Figueira (freguesia da Graça)
Precisa de reconstruir um pequeni barracão de tijolo, onde guardava batatas, abóboras e algum material
O fogo levou-lhe a moto-serra
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