“Se fizermos uma Disneylândia a cidade está perdida.” A afirmação do vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Salgado, 72 anos, manifesta uma preocupação partilhada pela autarquia e por muitos residentes: a descaracterização da cidade perante o apelo massivo do turismo. Até novembro do ano passado, a grande Lisboa recebeu 3,7 milhões de visitantes estrangeiros (o equivalente a 1,3 vezes a população da Área Metropolitana).
“Para que se mantenha a identidade é fundamental a cidade ser projetada para as pessoas que cá vivem. Só assim os visitantes vão gostar de cá estar”, acrescentou o arquiteto, responsável por projetos como os espaços públicos da Expo 98. Manuel Salgado com a VISÃO connosco na sequência da conferência Por Um Bairro Melhor, uma iniciativa promovida pela VISÃO, SIC Esperança e Comunidade EDP que, ao longo de seis meses, andou em busca das melhores ideias para revitalizar os bairros portugueses.
Foram apresentadas mais de 400 propostas, celebradas nesta conferência, que se realizou na passada semana, na sede da EDP, em Lisboa.
O programa Uma Praça Em Cada Bairro é uma das iniciativas mais emblemáticas da autarquia no âmbito da reabilitação da vida de bairro. Ao todo, serão intervencionadas 30 praças. As mais recentes a serem inauguradas não estiveram isentas de contestação: Saldanha e Picoas (o chamado Eixo-Central).
“Começámos com reuniões com a população, mas há sempre conflitos entre os que estão mais preocupados em ter espaço para circular e estacionar o carro e os que não estão. As pessoas queixam-se de que já não podem estacionar em segunda fila para irem tomar café, mas em contrapartida agora há muitos parques de estacionamento ali à volta”, defende.
O volume de obras em simultâneo na cidade tem dificultado a vida de muitos lisboetas e levou a VISÃO a fazer testes, à hora de ponta, no mês de setembro, altura em que percorrer os 6,2 quilómetros de distância entre o Campo Grande e o Palácio de São Bento podia demorar 32 minutos. Às acusações de eleitoralismo perante o aumento das obras com a aproximação das autárquicas, Manuel Salgado contrapõe a demora da concretização dos projetos. “Desde o momento que temos a ideia até à sua materialização passa muito tempo.Com quatro anos de mandato, as coisas tendem a concentrar-se num período relativamente curto.”
Contudo, o vereador admite que a comunicação das obras poderia ter sido mais eficaz “Não podemos pensar que tudo foi bem feito. Tudo pode ser sempre melhor” e não se coíbe de dizer o que ainda gostava de ver no Eixo-Central: “Falta um sistema de sinalética e de comunicação que permita às pessoas orientarem-se e sentirem-se mais seguras ao saberem que ruas e serviços têm à sua volta”. Curiosamente, há outro detalhe na mente do arquiteto: a cor. “É importantíssima para tornar as cidades mais agradáveis, e foi um dos aspetos que trabalhámos na Expo 98.”
CIDADÃOS DERROTAM CÂMARA
Manuel Salgado está confiante no poder das tecnologias. Em vez de fomentarem o individualismo, podem permitir que “grupos de pessoas se organizem, seja para contestarem soluções com as quais discordam ou para desenvolverem projetos que interessem à sociedade civil”. E a Câmara de Lisboa já sentiu o efeito deste envolvimento virtual (e não só) dos munícipes. No ano passado, os residentes das freguesias de Arroios e da Penha de França uniram-se numa proposta que contestava a construção de um parque de estacionamento na zona e, em alternativa, puseram a votação no Orçamento Participativo (OP) a construção do Jardim do Caracol da Penha.
Com quase dez mil votos, o projeto seria o mais votado de sempre do OP.
“O Jardim do Caracol da Penha foi uma vitória dos moradores que aceitámos muito bem. Estávamos convencidos de que era mais necessário estacionamento, mas fomos surpreendidos. O que as pessoas pediram foi um jardim. Fomos “derrotados” por uma proposta que vinha muito mais ao encontro do modelo de cidade que defendemos.”
De acordo com o vereador, desse modelo de cidade também faz parte “conseguir equilibrar os custos da habitação para permitir que os lisboetas consigam viver no centro”. Caso contrário, “corre-se o risco de ter uma cidade onde os preços subiram de tal maneira que só determinados estratos da população lá podem viver”. Em breve, a autarquia vai colocar no mercado sete mil casas com rendas acessíveis (entre os €250 e os €450).
O arquiteto tem consciência de que “é real” a expulsão de residentes dos bairros históricos para dar lugar a alojamentos turísticos ou locais. “Um edifício que esteja no Airbnb [plataforma online de arrendamento de curto prazo] é licenciado como habitação; depois, os proprietários podem vender ou arrendar a longo ou curto prazo, e é muito difícil controlar o tipo de utilização”.
O vereador deixa um apelo ao Governo central: “É necessária uma legislação mais apertada, sobretudo que não seja mais favorável do ponto de vista fiscal para o arrendamento de curto prazo do que para o de longo prazo.” Manuel Salgado não está de acordo com a fixação de contingentes para o turismo e aponta outra solução: “O que devemos fazer é dispersar pela cidade os pontos de atração. Esse é um papel da autarquia. Não há razão para o turista não ir ver o Lumiar, o Beato ou Marvila”.
Afinal, a célebre hospitalidade portuguesa está por toda a cidade.