As recordações da primeira professora de piano podiam, idealmente, ser ainda hoje a grande fonte de inspiração de João Farinha. Mas não é o caso. “Lembro-me de tentar tocar, muito ao de leve, na campainha, com esperança de que ela não ouvisse…”, recorda João Farinha. Com cerca de 90 anos, a sua vizinha pianista, nos prédios altos da Portela de Sacavém, tentava, com velhos métodos, impor rigor e disciplina ao aluno. Resultado: “Era muito chato.” Afinal, o pequeno João tinha-se entusiasmado com a música quando, com 11 ou 12 anos, em casa de um amigo, começou a brincar com um teclado sintetizador da Casio. Nesse mesmo dia, levou-o emprestado e divertiu-se a tentar tocar músicas que conhecia. Nas tais aulas, faltava-lhe paciência para longos exercícios ou a repetição ad eternum do Für Elise, mas sobrava-lhe entusiasmo para tentar descobrir sozinho o segredo de transformar as teclas pretas e brancas em melodias. Em música. Hoje, reconhece que foi aí, nesse caso de amor com um Casio, que tudo começou. Mas o que distingue João Farinha é o modo como fez esse entusiasmo pré-adolescente perdurar até hoje.
Chegou a inscrever-se num curso superior de arquitetura, mas sentiu que estava no lugar errado e, inevitavelmente, acabou por chegar o momento de dizer aos pais que estava decidido a apostar tudo na música como quase sempre acontece, eles não acharam grande ideia… Mas é muito provável que já tenham mudado de opinião. A passagem por um curso, num conservatório, na Holanda, onde 70% dos alunos eram estrangeiros, veio abrir-lhe novos horizontes e, ao mesmo tempo, aproximá-lo mais do jazz. Mas o grande trunfo deste músico é não ser obediente a géneros e préformatados.
Lembra-se de ter chegado ao jazz ouvindo, ainda adolescente (e com aquele espanto reservado à descoberta de mundos desconhecidos), Miles Davis e Wayne Shorter. O pop rock alternativo ocupava-lhe mais os dias. Hoje, como músico (pianista, sim, antes de mais, mas também entusiasta de toda a tralha eletrónica e do potencial de liberdade que a tecnologia dá à música) sente que não é uma coisa nem outra. Pode habitar qualquer um desses universos, sentindo-se sempre um pouco estrangeiro. Mas tem a certeza de que, nas salas de aula da Escola Superior de Música (do Instituto Politécnico de Lisboa), nos estúdios ou nos palcos, está no lugar certo. Uma casa chamada música.
BI
Idade: 31 anos
Atividade: Músico. Estudante na Escola Superior de Música de Lisboa (IPL) e integrante do projeto Ogre, que lançará o segundo disco em setembro
A escolha de… Maria João
Cantora e professora
“Tal como eu, o João também começou tarde a aprender música, sinto essa identificação com ele. É muito discreto e tímido, mas além de ser muito talentoso, tem uma característica que eu prezo muito: sabe o que quer, tem ideias muito bem definidas sobre a sua música e onde pretende chegar. Às vezes, encontramos jovens músicos que são muito virtuosos, tecnicamente excelentes, mas não sabem o que querem… Não é, de todo, o caso do João Farinha. Foi meu aluno, hoje trabalhamos juntos no Ogre e tenho aprendido muito com ele; consegue, porque além de pianista também se interessa pelo uso de computadores e novas tecnologias, trazer um universo de sons que eu há muito queria ter na minha música e ainda não conseguira”.