![Barra Mil](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/11/6343341Barra-Mil.jpeg)
Às 11 de uma quinta-feira, as ruas da Lx Factory estão ainda desertas e escuras. Há gente suficiente para aconchegar os originais restaurantes que foram abrindo neste novo “bairro”, em Alcântara. Ainda se vê luz na Ler Devagar, uma enorme livraria, com sala de exposições e bar de tapas. O final de tarde foi de lançamento de livro e por ali continuam alguns clientes, em amena tertúlia, entre dois ou três copos de vinho. As linguiças assadas já fizeram parte do programa, agora é da noite que se fala.
“Os espanhóis saem e ponto. Nós precisamos de uma desculpa. Ainda bem que Lisboa está tão cosmopolita”, nota Xavier Martins, 41 anos, um “bairro altista dos antigos” que não dispensa uma passagem quase diária pela Ler Devagar. O ambiente é descontraído, quase familiar, mas à meia-noite as luzes apagam-se. Siga a festa, com outro pretexto – um concerto do projeto They’re Heading West, no bar do Teatro A Barraca, no largo de Santos.
‘November was when we first met. It gives me shivers when I remember…’ (They’re Heading West)
Assim que a peça O Fantasma do Chico Morto, de Pedro Cardoso, termina, as portas abrem-se para outro espetáculo, por 6 euros. Vai tocar o grupo Domingo no Quarto, a convite do projeto criado há um ano para uma digressão aos EUA e Canadá. Francisca Cortesão, Mariana Ricardo, Sérgio Nascimento e João Correia têm as suas próprias aventuras musicais, mas esta noite sobem juntos ao pequeno palco do bar.
A Barraca é um local especial para um certo tipo de noctívagos. “Não tem cadeiras nem mesas do Ikea”, nota Francisca, 28 anos, artisticamente conhecida por Minta, de calças de ganga largas e cabelo desalinhado num totó. No chão há soalho, a mobília é de madeira, os cortinados de um pesado veludo vermelho. As bebidas são baratas, dando grande saída à imperial.
Quando as luzes ficam mais fracas, o compositor Walter Benjamin está sentado ao piano. Nalgumas mesas com tampo de mármore, as conversas sobrepõem-se à música que agora embala o ambiente. Na estreita varanda, há sempre cigarros que se fumam, com vista sobre uma das zonas mais movimentadas da cidade depois de sol se pôr.
‘Ai, se eu te pego, ai…’ (Michel Teló)
Mude-se de poiso. Sigam-se os grupos de universitários que atravessam a linha do comboio (nem sempre pela passagem de peões), rumo ao Urban Beach – “que monopoliza a noite de quinta-feira”, acredita António Lima, 20 anos, estudante de Gestão, jogador de futebol e um dos errepês daquela discoteca do grupo K. Pelo caminho, vê-se de tudo: elas de pernas de fora, saltos de 10 centímetros, muita base e rímel; eles mais descontraídos, quase sempre cambaleantes, segurando baldes de plástico (meio litro de bebidas alcoólicas) que se vendem nos bares de Santos. Já lá iremos.
Por enquanto, deixamos passar as 2 da manhã à conversa com António. “Ó Lima, estamos à tua espera!”, berra um amigo do outro lado da “fronteira” ferroviária. E ele há de lá ir ter, não sem antes contar como funciona isso de ser errepê em festas com guest list. “Acima das vinte pessoas, por cada dez que meto no Urban Beach, recebo 5 euros. Mas o melhor é entrar sem pagar e ter bebidas à borla.” Os trocos que recebe, duas vezes por mês, ajudam a compor a mesada. Embora isto da crise não afete o seu dia-a-dia. Nem o dele, nem o dos que se encaminham para a festa Insanity – todos parecem pertencer a uma certa população universitária com poder de compra.
Na noite seguinte, o mesmo tipo de meninos desaguaria no ground zero da discoteca Kapital, numa festa do ISLA. Ricardo Merca, 19 anos, estará a cargo da música por umas horas, num registo house comercial. “Tenho de me adaptar às pistas. Em casa oiço house mais progressivo, rock antigo e anos 80.” Além da música, estuda marketing e sai muito à noite. Bate todas as discotecas da moda – as que se enchem com pessoas da sua idade: Urban, Kapital, Loft, Vintage, BBC.
‘Na nha vida, Bia Bia anh ia ia…’ (Grace Évora)
São 3 da manhã. O táxi baralha-se à procura do novo B.Leza, reaberto no Cais do Sodré, cinco anos depois de deixar o palácio Almada Carvalhais, em Santos. Um enorme armazém cor-de-rosa serve agora de morada a este clube dedicado à música cabo-verdiana. O concerto de Grace Évora, o cabeça de cartaz da noite, está a dar as últimas, mas ainda há muita gente a dançar agarradinha.
António Maurício faz uma pausa no baile para ir buscar uma bebida. Vive em Portugal há 22 anos, mas não trabalha cá. Soldador, passa meses fora, a fazer fortuna. “Posso ganhar 7 mil euros por mês.” Quando vem ver a família, passa as noites na rua. “Esta é a melhor casa de Lisboa.”
Há quem pense o mesmo do Lux, ao lado da estação de Santa Apolónia. Mas nem sempre é fácil ultrapassar a entrada, sobretudo em noites especiais. O Dj-estrela alemão Michael Mayer está aos comandos dos seus vinis, no piso inferior, onde a decoração escura e o jogo de luzes provocam movimentos mais psicadélicos. É ali que se dança a sério, que o corpo se deixa ir. É ali que damos de caras com o realizador João Botelho, 62 anos, talvez um dos últimos boémios, no mais completo sentido da palavra. São quase 5 da manhã e os clientes continuam a entrar. Não beberão tanto como antigamente, porque já se aviaram em casa ou em bares mais baratos.
‘I wanna be a billionaire, so fucking bad…’ (Bruno Mars)
Sexta-feira. Ainda nem é meia-noite e isso nota-se pelo vazio dos bares Pérola de Santos ou Vaca Louca. Volta e meia entra um grupo que avia shots de vodka e absinto (entre €1 e €1,5). Também há baldes a 4 euros e meio. A bebedeira quer-se rápida e barata, se faz favor.
Mais abaixo, junto ao Largo de Santos, há uma mão cheia de sítios obrigatórios na noite de qualquer adolescente. Grandes cartazes apregoam bebidas “bué da baratas”, de rápido consumo e bem misturadas, como o mítico TGV (shot de tequila, gin e vodka). Dentro dos bares pode-se dançar, mas o que está a dar é o “entra-e-sai”, a conversa à porta, o cigarrinho.
Andam por ali muitos candidatos à festa que mais tarde encherá o Loft, como os finalistas do Secundário que viajaram até espanhola Benalmádena, nas férias da Páscoa. Assumem que bebem bem antes de entrar nas discotecas. No Botica, já na Av. D. Carlos I, podem engolir litrosas (1 litro de cerveja) ou ficar na rua com garrafas de refrigerante de laranja, recheadas de vodka (típicas de botellón). Diogo Abreu, 17 anos, é dos poucos que não se avia em terra. “Gosto de dar dinheiro aos senhores dos bares para eles continuarem a mexer com esta rua.”
Até aos 16 anos, arriscam-se a ficar à porta e, pior, a não beber. A falsificação do BI é, por isso, comum: “Passa-se o documento no scanner, vai-se ao Paint e muda-se a data de nascimento. Depois, apresenta-se a fotocópia quando nos pedem identificação.”
Até ao Largo do Conde Barão, o cenário não muda. Garrafas no chão, copos de plástico por todo o lado, grupos abraçados a gritar, jovens que denunciam bebida a mais. Uma mercearia está ainda de portas abertas, mais parece um bar. Há fruta e legumes em primeiro plano, mas é a cevada da cerveja que mais atrai a vasta clientela. Àquela hora – pouco passa da 1 da manhã – já não há garrafas Sagres para vender. Também se compra sangria engarrafada e pacotes de cartão com 5 litros de vinho rasca.
‘It’s Friday, I’m in love…’ (The Cure)
Ali perto, na Bica a noite faz-se na rua, de copo na mão e muita conversa no ar. Sempre em plano inclinado, e o elevador lá no alto, parado. Com azar, apanha-se o camião do lixo, que sobe a íngreme rua em marcha atrás e quase atropela os noctívagos, na sua maioria artistas.
Nos bares – mais de uma dúzia – vendem-se caipirinhas de vários sabores, mas as mais genuínas encontram-se no Baliza. Bruno Abreu, 35 anos, mistura-as como ninguém, e tudo se faz ali à frente, sem pressas, ao som de uns acordes de jazz. “Há menos gente por aqui, mas os que vêm são mais exigentes”, vai dizendo. “A Bica começou por receber as pessoas que se fartaram de um Bairro Alto descaracterizado. Alguns desses agora descem para o Cais do Sodré, mas depressa vão fartar-se daquilo.”
Antes de descermos a rua, para perceber a base desta afirmação, ainda subimos ao confuso Bairro Alto. Na rua da Barroca não se consegue andar. Os carros que ali estacionam têm restos de lima, copos de vinho e de cerveja no capô. Os bares estão atulhados; nas ruas, estreitas, nem se vislumbra a calçada. Os vendedores ambulantes tentam a sorte com flores, óculos coloridos, isqueiros, bugigangas luminosas. Viram-se garrafas de vinho boca abaixo. Aqui e ali, cheira a droga no ar. As frases atropelam-se e os telemóveis fazem parte da noite. “Estou a dar um baile a esta gaja…”, diz um miúdo, segundos depois de enviar um sms. Na travessa do Poço da Cidade, amontoam-se sacos de lixo. Mais à frente, faz-se chichi contra um contentor e logo se ajeita o penteado no reflexo do vidro de um carro.
‘Do you wanna funk me…’ (Sylvester)
Frente ao Conservatório, há um local onde tudo isto fica para trás: o Teatro do Bairro, aberto há um ano nas instalações da rotativa do desaparecido Diário Popular. Lá dentro, tanto pode estar a acontecer uma festa de angariação de fundos, como uma sessão de cinema ou um evento à porta fechada. O teatro só abre pela noite dentro com programação garantida.
António Pires, 43 anos, é o responsável pela oferta cultural. Longe vão os tempos em que ele próprio era uma “saideira”, sempre a vaguear pelo Bairro Alto, poiso habitual de artistas que, entretanto, se fartaram da confusão, do barulho, do carro do lixo a pisar-lhes os pés. “As pessoas, hoje, pensam duas vezes antes de sair, porque, à noite, 20 euros desaparecem num instante.” Sente Lisboa mais cosmopolita que nunca. Lembra que se vai mais vezes ao estrangeiro e que, dessas viagens, se trazem melhores ideias. No entanto, observa, “o botellón arrastou consigo uma população sem qualidade, com igual direito à rua”.
O Cais do Sodré renasceu em novembro, para dar resposta a quem andava perdido, sem poiso adequado na cidade. Mas, em seis meses, a rua Nova do Carvalho massificou-se. Às 4 da manhã, quando os novos bares (Pensão Amor, Velha Senhora, Povo e Sol e Pesca) fecham as portas, a confusão ainda é muita. Torna-se difícil circular. Há um rosto ensanguentado à porta do Roterdão, polícia à sua volta.
Passa um grupo de madrilenos que tentam entrar num bar de strip, mas o pagemento da entrada dita-lhes o final da movida. Os onze amigos regressam ao hotel bem impressionados com a noite lisboeta, minutos antes de começar uma rusga no Jamaica. Seis polícias de choque, armados de shotguns, montam cerco à porta da mítica discoteca. Os clientes aparecem na rua a conta-gotas. “Pararam a música, mandaram-nos sair e mostrar a identificação. Um absurdo!”, protesta João Bota, 24 anos, ainda de copo na mão.
O comandante esclarece que se trata de uma operação de rotina, para detetar indivíduos suspeitos, armas e estupefacientes. Nada é apreendido, ninguém é detido, apesar da mobilização. “É a segunda vez este ano. Hoje, até foi fácil e rápido”, desabafa o porteiro.
Vai-se a polícia, fica a festa. As portas abrem-se de novo, já passa das 5 da manhã e recomeça a dança, ao som de Zeca Afonso. “Venham mais cinco, de uma assentada que eu pago já!”