O Estado tem de ser mais auto-interventivo no problema da habitação que, a par da inflação, está hoje no epicentro das preocupações das famílias portuguesas. Colocar o seu próprio edificado em prol da causa pública, reforçar e melhorar a rede de transportes para criar soluções de mobilidade a quem vive nas periferias e esbater os atuais longos prazos nos licenciamentos de casas, são algumas das soluções para colmatar esse problema, defende Paulo Caiado, presidente da APEMIP (Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal). Temas que estarão em debate na convenção organizada pela associação – o IMOCIONATE -, e que acontecerá a 4 de julho, no Centro Cultural de Belém em Lisboa.
Um dos principais eventos do setor imobiliário este ano, dirigido a todos os agentes, mediadores e consultores imobiliários em Portugal, onde serão abordados vários temas do futuro da mediação imobiliária nas suas diversas áreas, com um foco nos temas da transformação, sustentabilidade, tecnologia e demografia. Têm já presença confirmada no evento a ministra da Habitação, Marina Gonçalves e a vereadora da Habitação e Obras Municipais da autarquia de Lisboa, Filipa Roseta, entre outros.
A ministra da Habitação vai estar presente na vossa convenção que se realiza na próxima semana. Que mensagem tem para lhe transmitir relativamente ao programa Mais Habitação que tanta polémica tem causado no setor?
O que de mais relevante sobressaiu no programa foi o facto de ter associado a ideia de que é preciso fazer baixar o preço das casas. E isso sobressaiu de uma forma preocupante. O principal desafio do Governo e do país, para todos nós, será que venham para o mercado soluções, quer para venda quer para arrendamento, com preços diferentes. E como é que isso se faz? Para mim, é óbvio que não passa por baixar o preço das casas pois é preciso lembrar que a esmagadora maioria da poupança da população portuguesa – estamos a falar de 73% das famílias – está nas suas casas. Um exemplo: se as casas baixam de preço, tornando-se acessíveis, portanto, se um T2 em Lisboa, na vez de custar 400 mil euros, passe a custar 200 mil, significa que as famílias lisboetas que são proprietárias de um imóvel estão a perder metade das suas poupanças! Significa que um casal que se divorcia e precisa de vender a casa para refazer as suas vidas ficaria com metade do dinheiro. Significa que um casal, cuja família vai aumentar e quer vender a casa para comprar outra, perderia dinheiro… Tudo isso seria catastrófico!… Mais: parece-me até um bocadinho leviano falar-se disto como o Governo falou. Porque se as casas em Portugal baixassem de preço de forma generalizada haveria um problema gravíssimo na banca que o Governo não quer e os portugueses também não…
Qual é a vossa proposta?
Acho que precisamos todos que surjam no mercado segmentos de oferta com preços mais acessíveis! Porque são feitos exatamente com esse fim. Com apoio do Estado, seja em termos fiscais, seja em termos de terrenos, etc, mas que surjam opções, para – e aí sim – as pessoas possam ter opções mais acessíveis.
Está a falar das cooperativas de habitação, é isso?
Por exemplo. Através da disponibilização de terrenos. O Estado tem um património imenso um pouco por todo o país, basta dizer a um promotor – “o património está aqui, a única condição é que tem de construir oferta imobiliária futura com valores controlados que sejam mais baixos do que aqueles que caracterizam o mercado”. O mercado tem de funcionar de forma livre, com regras, obviamente, mas a sociedade em geral tem de perceber que este é caracterizado por robustez de valor. Ou seja, não queremos os preços a subir desmesuradamente, porque isso significaria um risco, mas não queremos que as casas percam valor. Eu não quero que a minha casa valha menos dinheiro, nem a da minha mãe, nem a dos meus filhos, nem a dos meus amigos. É simples…. Quero que aquele valor tenha a maior robustez possível.
Aquilo que se passou em Portugal foi que a enorme ausência de edificação – por inúmeros aspetos onde o tema dos licenciamentos tem, de facto, aqui um peso muito relevante – criou um problema de falta de oferta, conjugada com um outro aspeto, que ninguém quer falar mas que é importante e deve ser falado: entre 2016 e 2022 entraram em Portugal mais de 400 mil migrantes. Ainda bem, felizmente que entraram. E vou dizer-lhe mais: têm de entrar muitos mais porque Portugal tem um problema estrutural muito grave que é o decréscimo demográfico. E sem contribuintes, o nosso país não pode continuar como o conhecemos até aqui. Portanto, nós precisamos de contribuintes. Estes migrantes, ao longo destes anos, com toda a certeza, precisaram de casa. E que casas é que eles absorveram no mercado? Não estamos a falar do Golden Visa. Estamos a falar, por exemplo, do casal de brasileiros que veio trabalhar para um restaurante ou da senhora que foi trabalhar para uma loja. Mais: a história do Plano de Resiliência e Recuperação (PRR) – que está direcionado para a edificação e para a habitação – só é concretizável com mais mão-de-obra e vamos precisar de muito mais. Estas pessoas todas têm de ser alojadas, têm que ter alojamento digno. E o que fizeram foi arrendar uma casa ou, eventualmente enfrentaram uma aquisição, se tiveram condições financeiras para o fazer. Absorveram que casas? Absorveram parte da oferta, e da oferta de valor mais baixo. Isto para referir o seguinte, e voltando ao início da questão: aquilo que me parece fundamental é que medidas, fossem elas quais fossem, tivessem o grande objetivo de termos no nosso mercado, uma parte do mercado que, por ser intervencionado pelo Estado, tem como objetivo proporcionar imóveis a valores mais baixos. Sem que isso signifique reduzir o preço das casas de um modo generalizado no mercado. Portanto, eu diria que isto foi o que mais me surpreendeu, isto não ser devidamente explicado e termos ouvido o Governo dizer que estas medidas pretendem baixar o preço das casas quando nós sabemos à partida que isso não pode acontecer.
Surpreendeu-o o facto de os bancos não aparecerem aqui nesta equação? Há quem defenda o regresso do crédito Jovem de outros tempos, como mais uma forma de minimizar o problema habitacional…
Considero que a salvaguarda do princípio constitucional do Direito à Habitação, conciliado com o cenário atual de escassez de oferta cabe ao Governo. Acho que a solução não passa pelos bancos, a solução tem a ver com soluções habitacionais sob a intervenção do Estado. Agora, outro assunto é a política comercial dos bancos, no tema das taxas e, isso é outro assunto.
Tem destacado também a questão dos licenciamentos…
O tema dos licenciamentos no programa Mais Habitação foi, sem dúvida, importante. Agora, penso que é fundamental encarar este aspeto com algum pragmatismo. Nova edificação implica o seguinte: é preciso um terreno que tem um custo; seguidamente há um processo administrativo que tem um percurso e, claro, alguns custos associados; depois temos a edificação, a construção e lá na frente vamos ter casas. Este é o processo, sejam casas do Estado ou não, o processo é este. Como é que o tal produto final pode ser mais acessível? Com os tais terrenos. Ou eventualmente com terrenos acrescidos de edificação. E o que é isto? Quando o Estado já tem imóveis, que já estão edificados, talvez o processo possa ser mais rápido, talvez esses imóveis possam ser reconvertidos em habitação. Um exemplo até simbólico: o edifício onde era o Ministério da Educação na Avenida 5 de Outubro em Lisboa, foi encerrado há uma série de anos e era suposto ter sido transformado para residência de estudantes. Pergunta: porque é que os estudantes não estão lá? O que falhou? Foi o licenciamento, foi o Tribunal de Contas, foi o quê? Porque é que não estão lá? Outro exemplo: o Hospital Miguel Bombarda, no centro de Lisboa ocupa uma área imensa no centro da cidade. Pergunta: o que é que impediu para que isso acontecesse?
Agora, é claro que a intervenção dos privados é indispensável mas os privados quando intervêm no sector imobiliário, é para gerar lucros. Se há aqui um objetivo estratégico para o país onde é preciso ter soluções habitacionais a preços mais acessíveis então, o Estado tem de suportar uma parte do encargo neste processo. Como? Ou através do terreno ou apoiando a edificação, ou apoiando quem vai comprar ou quem vai arrendar, ou reduzindo a fiscalidade que vai ficar agregada a todo este processo… Portanto, estamos a falar de algo que é totalmente identificável e quantificável. Seria importante o Governo associar a cada uma das medidas metas, objetivos quantitativos… O que não aconteceu.
E quando é preciso celeridade para quem está numa situação aflitiva a nível habitacional…
Pois, o tema é esse. O imobiliário é caracterizado por grande inércia, os processos são lentos, a construção é lenta. Daí que uma forma de ganhar tempo, seria por exemplo pegar no património do Estado e reafectá-lo à Habitação, aí conseguiríamos ganhar algum tempo… O património do Estado é imenso e está distribuído pelo país todo. Boa parte não tem qualquer utilidade neste momento. Portanto, ganhar-se-ia no domínio dos terrenos porque o terreno já existe, muitas vezes ganhar-se-ia no domínio da edificação porque a edificação de raiz até já lá está. E, portanto, poderíamos estar a falar muitas vezes em reconverter. Teoricamente, poderia representar um incremento de oferta importante.
Saindo do pacote Mais Habitação e olhando para o atual momento do mercado. O mais recente relatório da Confidencial Imobiliário já mostra uma desaceleração de compra e aumento na intenção de arrendamento… O que pode acontecer? Poderá haver impacto nos preços?
Acho que estamos a assistir a um fenómeno que é novo, embora de algum modo previsível, que é o número de transações poder reduzir e isso não ter consequência no preço. Ou seja, o número de transações diminui por escassez de soluções, por falta de oferta. A maior alavanca do mercado, a principal, é a cadência de transação de casas usadas – ou seja, as pessoas que vendem uma casa para comprar outra, seja por que motivo for. Esta é a maior alavanca do mercado. Para ter uma ideia, em 2022, 90% dos imóveis transacionados eram usados. O setor residencial do imobiliário movimentou perto de 34 mil milhões de euros e a banca financiou 16 mil milhões. Agora, se eu, que me vou divorciar, ou casar, ou mudar de trabalho, e que até gostava de vender a minha casa para comprar outra, se eu não encontro a outra, então também não vendo. Isto não significa que os preços baixem. Deixando as intenções e indo aos factos. O que é que assistimos no primeiro trimestre deste ano? Os preços a subirem 5% em termos média absoluta e o número de transações a reduzir 3%. Claro que 5% é pouco, mas não deixa de ser uma subida e o número de transações a descer. Isto tem a ver com quê? Com o facto de não haver casas, logo não há transações.
Defende que os senhorios deveriam ter liberdade de estabelecer os preços de renda. Isso não criaria uma situação ainda mais caótica no mercado?
Desde logo, considero que a lei é incongruente. Imagine quem é dona de uma casa e nos últimos anos teve a sua casa sempre arrendada. Portanto, enquanto cidadã esteve sempre a contribuir para ter a sua casa no mercado arrendamento tradicional. Entretanto, tem um vizinho, daqueles muitos ricos, que possui uma dúzia de casas e nunca teve as casas arrendadas porque não gosta de inquilinos. Amanhã, ambos vão pôr as suas casas no mercado de arrendamento, a Marisa tem um tecto de 2% e o seu vizinho tem uma via verde porque nunca quis arrendar e agora que o mercado subiu, ele pede o preço que quiser enquanto os senhorios regulares têm um tecto limitado aos 2%. Não é justo. Independentemente de tudo isso, a generalidade dos senhorios quer durabilidade, previsibilidade. Acho até que o Governo devia de alguma forma criar incentivos, benefícios em sede de IRS para os senhorios que promovem esta durabilidade nos arrendamentos. Agora eu não vejo que o Governo deva, artificialmente, estabelecer este tipo de fasquias, quer dizer, não é um bom sinal numa altura em que se fala, por ser verdade, que uma das coisas que as pessoas querem é sentir-se confiantes. E a confiança é algo que se conquista no tempo.
O que diria a quem defende mais habitação a preços acessíveis para os jovens que a procuram em Lisboa ou no Porto? Porque os programas de arrendamento acessível são manifestamente insuficientes…
Todas as pessoas têm o direito de viver no centro de Lisboa, no centro do Porto ou na Quinta da Marinha… Temos o direito, não temos é o dinheiro. Mas isso é um fenómeno que tem relação direta com o mundo em que vivemos. Eu acho Manhattan lindíssimo, mas sei que custa 30 mil euros o m2. Portanto, o que é que eu acho que é importante e que ficou de fora em termos governamentais? Ficou de fora a importância de uma muito maior aposta do nosso Governo nos transportes interurbanos e, transportes interurbanos alinhados com os princípios da sustentabilidade, com as metas do carbono Zero. Ou seja, com soluções de linha ferroviária elétrica. E isso não existe, acho que só temos a linha de Lisboa-Cascais e a Linha de Sintra. O que seria de facto importante era haver aqui uma aposta em melhorar a mobilidade das pessoas, haver sistemas de transportes que permitam que morar a 20 ou 30 quilómetros do centro de uma cidade não seja uma dor de cabeça, que não seja um problema ambiental, que não tenha custos elevadíssimos para as pessoas. Isso seria extremamente importante. Na maior parte das capitais europeias, tal como aqui, as pessoas encontram casas à venda, a 30 quilómetros de distância do centro, a um quinto de um preço.
Como é o caso de Santarém ou Alenquer, é um facto…
E se sair de Santarém e for para aquelas aldeias à volta, são incrivelmente mais baratas do que em Santarém. A norte de Lisboa, e não estou a falar na faixa litoral como Mafra ou Ericeira, estou a falar de Sobral de Monte Agraço e aldeias à volta, Carregado, Alenquer… Eu vivo numa aldeia ao pé da Lourinhã, a 60 quilómetros de Lisboa e vivo lá porque sempre quis ter uma casa com terreno para ter aves, galinhas e cães e não tinha dinheiro para ter isso em Lisboa. Foi lá que arranjei. E há 30 anos que vou e venho todos os dias. Infelizmente não há meios de transporte mais eficazes e eu tenho tido a sorte de ter meios materiais que me permitem transportar-me de carro. Mas se existissem meios de transportes eficazes muitas mais pessoas fariam a mesma coisa.
Diria, portanto, que há um défice em termos de mobilidade …
Diz o artigo da Constituição que prevê o Direito à Habitação: “Ao Estado e às autarquias compete também assegurar uma rede de transportes interurbanos adequada”. Porque lá atrás, o legislador, os constitucionalistas, já tinham pensado nisto. Por isso é que uma das coisas que eu acho que é muito importante incluir o tema da Mobilidade quando se fala de Habitação e a verdade é que esse tema ficou de fora.
Vamos falar de burocracia e licenciamentos em Lisboa, um dos grandes entraves à entrada célere de mais casas no mercado. O Fernando Medina saiu, entrou o Carlos Moeda, houve mudança no descontentamento dos operadores de mercado ou nem por isso? Qual é o feed-back que tem?
A atual vereação tem revelado uma boa identificação das prioridades, do que fazer e como fazer. Pelo menos é essa a minha perceção. Agora, é uma estrutura com recursos pesadíssimos e, portanto, seguramente, são grandes os desafios de quem lidera a autarquia, o presidente Carlos Moedas e de quem lidera os pelouros da Habitação e do Urbanismo, respetivamente as arquitetas Filipa Roseta e Joana Costa Almeida. Mas é dramático do ponto de vista da nova edificação… Imagine um investidor que vai comprar um prediozinho em Lisboa para demolir e fazer um prédio novo. Nesta ideia há um pressuposto que não pode ser aleatório, que é o prazo. Pode demorar um ano ou pode demorar oito? Eu conheço promotores que fizeram aquisições há oito anos, que deram entrada de projetos há 8 anos e há 8 anos estão a aguardar licenciamento. Isto só é viável para quem é muito, muito rico, para quem tem muitos, muitos prédios. Não é viável para quem tem só um. O empreendedorismo português não tem capacidades financeiras de se atirar a um projeto, de pedir dinheiro ao banco e depois ficar não sei quanto tempo à espera que a Câmara diga que pode construir.