Comprar um apartamento novinho, mesmo a estrear, com as tão desejadas varandas, uma cozinha equipada, lugar de garagem, num condomínio fechado onde não faltam um ginásio, salão de festas e um generoso jardim (anti-stress essencial, em tempos de confinamento), a 2.000 euros o metro quadrado e perto de Lisboa, é missão impossível, certo?
Errado. Uma nova dinâmica está a surgir nas zonas periféricas da capital e também do Porto que está a levar milhares de famílias a apostar num verdadeiro virar de página. A entrada no mercado de novos e modernos projetos imobiliários a preços mais acessíveis nas periferias e, em contrapartida, os valores proibitivos das casas nos centros das duas principais cidades do país, bem como a possibilidade de estar em teletrabalho, nem que seja alguns dias por semana (uma novidade trazida pela pandemia), criou este movimento “irreversível”, asseguram as diversas fontes contactadas pela Visão Imobiliário.
O casal Peter Everson e Ana Filipa Coelho, com 27 é 26 anos, respetivamente, faz parte desta recente vaga de compradores imobiliários. Namorados de longa data, os dois planeiam casar em breve e há muito que procuravam uma casa que se encaixasse exatamente nas suas expectativas. Atualmente, cada um vive numa habitação arrendada – ele em Lisboa, ela no Cacém – e trabalham em Oeiras. Dentro de dois meses irão mudar-se para Vila Franca de Xira, local que conheciam pela rama mas para onde vão entusiasticamente começar a sua vida a dois.
“É a nossa primeira casa em comum e há muito que procurávamos um imóvel nos arredores de Lisboa. Quando ouvimos falar neste, pesou o facto de ser um condomínio privado, ser um projeto novo e que nos poderia dar a qualidade de vida que queremos”, sublinha Peter.
O facto de ter “lugar de estacionamento, jardim murado acessível só aos residentes e até salão de festas fez a diferença no momento da decisão”, reforça Filipa, acrescentando que, em contrapartida, “a distância em relação a Lisboa não teve qualquer importância” quando resolveram avançar com a aquisição.
O T3 que adquiriram no Vila Viva, em Vila Franca de Xira, empreendimento com dois edifícios, foi um dos 45 da primeira fase que literalmente ‘voaram’ assim que os promotores – a Rio Capital e o Estrutural Group – os colocaram à venda.
Os promotores, de origem brasileira, têm mais de uma década de experiência a construir para a classe média no Brasil, onde já somam mais de 2.000 imóveis edificados. Em Portugal este foi o primeiro projeto desta parceria e a comercialização não poderia ter corrido melhor.
O primeiro edifício, com 45 unidades, já está totalmente vendido e do segundo, com mais 40 habitações, restam apenas 10, com os preços diversos. Os da tipologia T1, por exemplo, não chegam aos 200 mil e os T2 começam nos 250 mil.
A rapidez das vendas não surpreendeu Carlos Silva, CEO da Estrutural Group. “Sabíamos que existia escassez deste tipo de produto imobiliário para o mercado português, segmento para o qual trabalhamos mas, claro, a pandemia acelerou ainda mais as vendas”, conta o responsável, salientando os grandes ‘trunfos’ exacerbados pelos confinamentos e onde se incluem as varandas que existem em todas as casas e o jardim exclusivo de mais de 2.000 m2. E, claro, o preço. “O máximo de 2.000€/m2 é quanto os jovens casais portugueses conseguem pagar”, sublinha, acrescentando que é esta, aliás, a premissa que rege a escolha dos projetos que abarcam. Agora que estão a terminar este empreendimento, cuja conclusão global está prevista para março de 2022, já estão em busca de terrenos ou imóveis da banca (como era o caso do Vila Viva que foi adquirido ao Montepio) para avançar para novos projetos. “Se não conseguirmos vender a esse valor aos nossos clientes, viramos logo a página e continuamos a procurar outro tipo de oportunidades”, reforça ainda o CEO da Estrutural Group.
Construir para a classe média começa a ser uma realidade e a rapidez das vendas comprovam a necessidade do mercado. Mas o produto novo é ainda escasso, o que tem estimulado de forma exponencial o preço dos imóveis usados. Dados da Confidencial Imobiliário cedidos à Visão com a evolução dos preços de venda por m2 nos últimos cinco anos revelam bem as mais-valias que estão a ser obtidas. Imóveis situados em zonas como Moita, Mafra, Sintra, Sesimbra ou Almada, a sul e Matosinhos ou Vila do Conde, a norte, praticamente duplicaram de valor.
“Antes da pandemia já havia um aumento do interesse pelas periferias. E esse interesse desenrolou-se numa lógica de mancha de óleo, em que na prática a valorização dos centros de Lisboa e Porto favorecia a valorização dos mercados mais próximos que iam atraindo também a promoção imobiliária. E essa promoção imobiliária alavanca, por sua vez, dinâmicas de valorização”, explica Ricardo Guimarães, diretor da Confidencial Imobiliário, realçando que neste processo, é porém, essencial “que haja uma planificação urbana de tal maneira que em termos de equipamentos sociais, de transporte, de mobilidade, exista a capacidade de gerar novas centralidades que sejam aprazíveis e que tragam soluções de habitação e boas condições de vida para as famílias”.
O que nem sempre acontece. “O problema no nosso território é que é muito heterogéneo e encontramos locais extraordinários colados a sítios que são verdadeiros desastres em termos de qualificação urbana e de desordenamento. Há que reverter esse desordenamento. Não temos que viver todos nos centros de Lisboa e do Porto”, enfatiza ainda o economista.
Mas quando acontece, a valorização imobiliária é imediata. “Muitos municípios à volta destas cidades têm sido muito inteligentes na sua gestão urbana com a criação de espaços que levam as pessoas a comprar não só porque é mais barato que a capital, por exemplo, mas porque começam a ser mesmo uma primeira opção. ”, diz, por seu turno, Ricardo Sousa, CEO do grupo Century21.
Zonas como Barreiro, Seixal, Montijo ou Alcochete, “que no passado eram tidas apenas como dormitórios e que hoje garantem acessibilidade de transportes, preços mais controlados e que são claramente ganhadoras, neste momento”, exemplifica ainda o responsável. Ou Amadora e Odivelas, onde as casas têm beneficiado de uma valorização exponencial desde que o metro passou a cobrir estas áreas geográficas, acrescenta ainda Ricardo Sousa.
“O conceito da ‘cidade dos 15 minutos’ começa a ser cada vez mais uma realidade e não só em bairros dentro de Lisboa como Campo de Ourique ou Alvalade. Já não há concentração do ócio no centro da capital mas sim uma descentralização crescente da cultura, restauração e bares com impacto direto na vida social destas zonas periféricas e isso tem ajudado a esse dinamismo”, reforça o responsável.
Para Rui Torgal, CEO da ERA Portugal, a movimentação atual das periferias só vem confirmar um processo, que é “irreversível” e que resulta de uma valorização natural do preço da habitação nos centros de Lisboa e do Porto. “Lisboa e Porto afirmaram-se nos últimos anos como grandes marcas internacionais. Isso não vai mudar. E essa valorização até já veio atrasada em relação a outras capitais europeias”, diz o responsável, lembrando que nesse movimento, “muitas pessoas venderam as suas casas nos centros das cidades a um preço que nunca pensaram conseguir atingir”.
E o Covid-19 ampliou ainda mais este movimento de êxodo para as periferias, diz. “Há quatro ou cinco anos isso já acontecia por questões meramente de mercado. Agora, a pandemia, lançou um alerta sobre o tipo de vida que as pessoas tinham e obrigou muitas a pararem, a refletirem e a perceberem que estava na altura de terem mais tempo de qualidade para si”, acentua Rui Torgal.
Foi precisamente isso que fez Susana Tadeu. A viver desde janeiro deste ano na Charneca da Caparica, Susana vendeu em 2020 por 220 mil euros o seu T2 em Sete-Rios, construído em 1935, para rumar a sul.
“Ia a pé para o meu local de trabalho mas estava saturada de Lisboa. Queria mesmo morar num local calmo, com espaço exterior onde pudesse relaxar e os meus cães também”, conta.
A procura do imóvel durou ano e meio e à quinta visita fechou negócio, adquirindo uma pequena moradia perto dos pinhais e da praia por 260 mil euros.
“A exigência de área exterior, de mais privacidade, até de um maior isolamento em relação a habitações contiguas, bem como a existência de espaços para desenvolver a atividade profissional a partir de casa, passaram a ser fatores determinantes na procura de casa nas periferias de Lisboa”, confirma Rui Martins, broker da Century21 Tipy Family, que intermediou a venda da casa de Susana.
Toda a margem a sul do Tejo tem estado em grande frenesim, confirma Rui Martins, que aponta para aumentos da procura de pedidos na ordem dos 35% no Seixal, 29% em Setúbal e 21% em Almada, por exemplo.
E é exatamente no Seixal, com uma vista aberta sobre o Tejo, que está a nascer o Seixal Baía, empreendimento com conclusão prevista para novembro de 2022. O empreendimento residencial com 46 frações, aposta em apartamentos com janelas panorâmicas, terraços e varandas e dá garantias que 35% da área total do projeto será reservada a área exterior.
“O início da comercialização aconteceu em junho e com apenas três meses de processo de venda já registámos 52,2% de reservas e contratos promessa de compra e venda”, conta Nelson Reis, franquiado da agência ERA Amora/Seixal, responsável pela comercialização deste empreendimento, cujos preços variam entre os 240 mil euros e os 650 mil euros para tipologias T2 e T3.
A maioria dos clientes são nacionais e cerca de 20% são estrangeiros que inesperadamente estão a descobrir a margem sul, desfrutando da melhor vista sobre Lisboa, ali tão perto.
Jorge Carvalho e a família trocaram a Quinta do Conde por um dos apartamentos maiores. “Comprámos o T3 do piso térreo que tem um terraço enorme de 120m2 à volta de toda a casa. E claro, a melhor vista para Lisboa”, diz, entusiasmado, Jorge, acrescentando que procurava uma habitação com espaço exterior mas “que não desse tanto trabalho como dá a moradia”.
Nelson Reis confirma “a dinâmica extremamente positiva” da margem sul, “sempre numa curva ascendente desde 2012/2013”, continuando bastante ativa e constante na captação de potenciais investidores. “A partir do momento em que a câmara Municipal do Seixal iniciou obras de requalificação e a reabilitação do tecido histórico, tem gerado, por si só, um grande interesse no sector privado em alternativa ao mercado de Lisboa, o que veio criar, consequentemente, pressão sobre os valores por metro quadrado”, confirma ainda o Nelson Reis.
Preços disparam também a norte
A norte, a pressão dos preços também se faz sentir e quem pode, não deixa a oportunidade fugir. E o saldo não é apenas financeiro.
A família Teixeira sempre apreciou a cosmopolita vida da cidade do Porto até a pandemia chegar e obrigar toda a gente a confinar-se dentro de quatro paredes. “Logo em junho de 2020 resolvemos colocar o nosso apartamento à venda e começámos a procurar um terreno para construir uma moradia. Tendo uma criança com quatro anos, a pandemia trouxe-nos uma urgência maior de ter um espaço exterior ”, conta Patrícia Teixeira.
A casa, um T3 localizado nas Antas, integrado num edifício dos anos 60 e que tinha custado em 2016 cerca de 87.000 euros (mais 30.000 para renovar) foi vendido por 202.000 euros. E o terreno onde irão construir a casa de sonho, desenhada pelo marido Pedro, que é arquiteto, foi encontrado em Gondomar por pouco mais de 102 mil.
“É um terreno com 1.800 m2 onde iremos construir uma casa com 200 m2 e que seja energeticamente o mais eficiente possível. Portanto, sobra ainda uma área exterior bastante significativa. Quando nos reformarmos, imagino-me a fazer uma horta. Atualmente está lá uma pessoa a fazer cultivo de flores e que nós iremos permitir que ela lá continue a ocupar parte do terreno”, afiança ainda a empresária.
Gondomar é uma das periferias com maior procura na área metropolitana do Porto. “Mas está tudo a crescer. A zona de Gaia sempre teve uma procura considerável e agora cresceu ainda mais, tal como Matosinhos e a Maia. Em alguns destes locais estão previstos novos projetos em 2022. Nessa altura, os imóveis usados terão de ajustar os preços”, explica Miguel Barradas, o consultor imobiliário da Remax Vantagem, que acompanhou a família Teixeira na sua transação.
Olímpio Barbiéri, o broker da agência Remax Vantagem, fala de uma diferença comportamental nos clientes imobiliários desde que a pandemia deixou o mundo do avesso.
“Antes da pandemia a localização era um dos fatores decisivos na compra da habitação. Agora as famílias dão mais importância ao imóvel e ao tempo que contam investir para o desfrutar. E ter áreas exteriores passou a ser fundamental bem como um espaço reservado para escritório”, realça Olímpio Barbieri.
As periferias das periferias
Este êxodo crescente de população para as áreas limítrofes de Lisboa e do Porto não está alinhado com a oferta de novos projetos imobiliários para estes mercados. “A oferta, de facto, é muito limitada e isso reflete-se nos preços que, não tenho dúvidas, continuarão a aumentar nos próximos dois ou três anos”, afirma Orlando Sampaio, broker da Century21 Rio e um dos franqueados mais recentes deste grupo imobiliário.
A agência, que abriu em Almada há apenas dois meses, não tem tido mãos a medir com pedidos muito específicos moldados à nova normalidade pós-pandémica.
“A possibilidade de teletrabalho teve um impacto enorme. Quem experienciou os confinamentos com filhos pequenos numa casa sem condições, quer mudar. E para quem pode, a possibilidade de o fazer, mantendo a proximidade de Lisboa mas numa moradia com jardim, home office e a poucos minutos da praia, está a fazê-lo”, garante o responsável.
O resultado deste frenesim reflete-se de forma esmagadora no valor das casas. Na Aroeira, por exemplo, o m2 está a ser pago entre 6.000 a 7.000 euros, valores pouco ajustados à classe média. “E não falta procura – moradias na Aroeira, Verdizela, Marisol ou Charneca da Caparica, vendem-se num instante”, diz Orlando Sampaio.
E quem não tem capacidade financeira de aqui comprar mas não desistiu do sonho de ter uma moradia, está a criar um novo mercado. “As pessoas estão a estender os seus territórios de localização ainda mais para sul. Mesmo em zonas onde o mercado era pouco ativo, antes da pandemia, devido à ausência do comboio e à fraca mobilidade. Fernão Ferro e Quinta do Conde são bons exemplos desse fenómeno”, diz o broker da Century21 Rio.
Antes do Covid-19 ainda era possível adquirir uma moradia V3 com 160 m2, zona de jardim e churrasqueira e lugar de garagem nestas zonas por 150 mil euros. Hoje, para o mesmo espaço, os valores andam na ordem dos 280 a 300 mil euros.
“Estamos a começar a assistir às periferias das periferias”, diz, por seu turno, Rui Torgal, CEO da ERA Portugal e dá o exemplo a norte. “Quando falamos em Gaia ou Matosinhos, as duas zonas com maior procura da Área Metropolitana do Porto (e acima até da própria cidade do Porto), existem duas realidades: a habitação junto à orla marítima e as zonas de interior. As pessoas que antigamente conseguiam comprar uma casa junto à linha da água, hoje têm de se deslocar para a periferia da periferia e comprar no interior ou nas zonas rurais destes concelhos”, remata ainda Rui Torgal.
Uma expansão imobiliária que vai manter-se nos próximos tempos com impacto direto nos preços.