Aos 73 anos, Nuno Crato já deixou as lides do ensino, por onde andou durante quase toda a sua vida adulta, mas continua interessado em refletir sobre Educação e Ciência, áreas que tutelou como ministro independente no governo de Pedro Passos Coelho (2011-2015). No seu mais recente livro, Aprender (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 145 págs., €4,5), o matemático aborda a necessidade de centrar o ensino no papel orientador do professor e que não dispensa as avaliações no fim de cada ciclo, não só para medir o pulso ao sistema mas também para incentivar todos os que o integram a melhorarem. Comecemos já por aí.
É um acérrimo defensor das provas de fim de ciclo nacionais. Porquê?
As escolas e os professores trabalham para que, ao fim do primeiro ciclo, do segundo, do terceiro ou do secundário, os alunos tenham o domínio de um conjunto de matérias. No primeiro ciclo, por exemplo, alguns professores podem ir mais depressa no primeiro e segundo anos e ir mais devagar no terceiro e quarto. Do ponto de vista nacional, o importante é que todos os alunos, ao quarto ano de escolaridade, tenham adquirido o mesmo conjunto de conhecimentos e de capacidades. Daí ser a altura em que devemos avaliar. É indispensável saber como está o ensino para podermos corrigir o que está mal e melhorar. Durante a pandemia e mesmo depois, não tendo havido as provas necessárias, estivemos cegos perante a realidade. Até dois meses antes de aparecerem os resultados do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, cujos resultados mais recentes foram divulgados em dezembro de 2023], o ministério achava que estava tudo bem. Quando surgiram, verificou-se que não estávamos nada bem.
A simples existência da avaliação contribui para a aprendizagem?
A avaliação no fim dos ciclos deve ser sumativa, no sentido de dar um retrato total do que se sabe, mas também funciona como um incentivo para todos melhorarem. Há investigação muito rigorosa que mostra que, quando alunos e professores sabem que vai haver uma avaliação no final de um ciclo, ainda que não conte para a nota, aprimoram-se e levam mais a sério o trabalho na sala de aula.
O peso dessas notas, quando elas contam para a avaliação final, não pode provocar injustiças em alunos que têm um dia mau ou se sair nos exames nacionais precisamente aquela matéria que não dominam tão bem?
Esse é um argumento muito falacioso, porque as notas não estão concentradas nesse momento dito decisivo. Um aluno do terceiro ciclo, por exemplo, tem três anos para estudar determinadas matérias, e o peso da avaliação interna é que é preponderante na nota final. O exame nacional não vale mais de 30%, e o aluno pode fazer uma segunda chamada, tem opções de melhoria de nota. Se estiver doente, pode apresentar um atestado médico e fazer o exame noutra altura. Além de que vai ser avaliado em duas disciplinas, pelo menos, portanto é preciso muito azar para que as coisas lhe corram muito mal em ambas, se conhecer razoavelmente bem as matérias. Quando as introduzimos no quarto ano de escolaridade, em 2013, o peso era minúsculo, de 25%, mas foi o suficiente para mudar a mentalidade de professores, pais e alunos, no sentido de que era necessário estudar mais. O que me preocupa não é este ou aquele caso específico, mas sim o País como um todo. Que todos os jovens tentem estudar mais, saber mais e estar mais bem preparados. A avaliação põe em causa alunos, professores, escolas e ministério, toda a gente envolvida no ensino. Se a evitamos, ficamos todos descansados e isso é muito negativo.
Um dos argumentos desfavoráveis é que essa avaliação nacional aumenta o número que alunos que não passam de ano.
O grande peso ideológico contra a avaliação é o de evitar saber se o País está a avançar ou não. O efeito nas reprovações dos alunos é muito pequeno e só se verificou no primeiro ano de aplicação da medida. Nos anos seguintes, a retenção diminuiu para os níveis anteriores ou ainda mais baixos. O que significa que houve ali um choque, mas, depois, todo o sistema melhorou. Porque passa mais gente e passa mais gente sabendo, que é aquilo que é importante.
Repetir um ano pode ser benéfico?
Há estudos com conclusões ligeiramente diferentes, mas há muitos que apontam para o benefício do estudante ficar retido um ano, caso não esteja preparado para passar. A reprovação é o último recurso e devemos fazer o possível para que não aconteça, proporcionando um apoio especial aos alunos para alcançarem os patamares mínimos necessários. Desde 2016, o que tem acontecido é deixar os jovens passar de ano, mesmo que não estejam preparados. Isso prejudica todos.
Uma outra crítica às provas nacionais é que tendem a deixar para trás alunos de meios mais desfavorecidos.
Percebo o argumento e respondo com um exemplo: amanhã estamos doentes, queremos ser tratados por um médico que não sabe bem o que está a fazer, mas que passou só por vir de um meio desfavorecido, ou queremos ser tratados por um médico que sabe o que está a fazer. Pelo facto de um jovem vir de um meio desfavorecido, não podemos desculpar-lhe a ignorância. O que temos de fazer é ajudá-lo a ultrapassar essa ignorância. A ideia paternalista de que devemos ter por ele uma particular condescendência não o ajuda, pelo contrário. Devemos ter uma exigência que ajuda todos e dar apoios especiais aos jovens que mais precisam. A partir do momento em que surgiram as avaliações internacionais, como o PISA ou o TIMSS [avalia conhecimentos em Matemática e Ciências], a conclusão é que, em média, sempre que foi introduzida uma avaliação nacional, os resultados do País melhoraram. Sempre que foi retirada essa avaliação, os resultados pioraram.
Testar os conhecimentos com frequência é em si mesmo um método de aprendizagem?
Esse é outro tema muito importante, a avaliação formativa, aquilo que é feito nas aulas. É uma das descobertas científicas mais importantes das últimas décadas, o chamado efeito de teste, que é a melhoria do conhecimento pelo facto de esse conhecimento ser testado. Ao contrário de um computador, que responde à mesma pergunta sempre da mesma forma porque a sua memória não muda, no cérebro humano não é isso que se passa. Cada vez que é confrontado com uma pergunta, o cérebro humano tem de buscar a informação e tem de a reinterpretar para a expor. Todo esse processo reforça o conhecimento.
Aquela ideia de que os alunos que estudam na véspera dos testes não absorvem o conhecimento e esquecem tudo no dia a seguir é um mito?
Não é um mito completo, mas é uma má estratégia porque habitualmente não funciona, se os testes forem bem concebidos. A verdadeira aprendizagem não é decorar meia dúzia de factos dispersos, é integrar conhecimentos noutros conhecimentos. A verdadeira aprendizagem não é decorar a data da revolução republicana em Portugal, que também é importante saber, mas conseguir relacionar isso com o que aconteceu, com quem era o rei, porque é que estavam contra ele, qual era o regime, e isso não se decora na véspera. É um conhecimento que se vai adquirindo. A capacidade de ir revendo a matéria e ir integrando as novas informações naquilo que já se sabe é que é a boa preparação para a vida, e para os exames também.
Porque prefere o ensino explícito da matéria em sala de aula a incentivar os alunos a procurarem, por si próprios, o conhecimento?
No fundo, porque é muito mais eficiente. O sistema de aprendizagem pela descoberta não o é. Temos os jovens na escola durante 12 anos, ou mais no caso de continuarem os estudos, e queremos que aprendam muito do essencial que a Humanidade construiu ao longo de 20, 30 ou 40 séculos. Agora, também defendo no livro que as duas perspetivas não são antagónicas, no sentido em que, quando somos introduzidos numa determinada matéria, o ensino explícito pelo professor é fundamental, mas, a partir de certo momento, quando o aluno já domina o essencial, é bom confrontá-lo com desafios, ou seja, os projetos também são bons, mas não todos os dias.
Acabam por ser outra forma de testar e avaliar os conhecimentos dos alunos?
Claro. O que não funciona é a ideia de que os alunos estão entregues a si próprios para descobrir as coisas, uma ideia completamente falaciosa, mas que está na cabeça de muitos pedagogos, a quem eu chamo de românticos, ou construtivistas.
Neste momento, a educação em Portugal está mais virada para esse ensino romântico, mais centrado no aluno?
Não sei responder, porque não há dados. Que o discurso oficial e muitos documentos do Ministério da Educação vão nesse sentido, é verdade. Que as escolas de formação de professores, tanto politécnicas como universitárias, vão nesse sentido, não tenho dúvidas. Agora, se isso na realidade se passa, ninguém sabe. Duvido, porque a sua aplicação é quase impossível. Um professor pode ter sido treinado ou doutrinado na pedagogia da descoberta e, quando chega à sala de aula e percebe que não funciona, trata de arranjar maneira de ensinar através do ensino explícito. De qualquer forma, o que está em causa é como esta pedagogia desorganiza o nosso sistema de ensino.
Está na base da desvalorização das avaliações nacionais, por exemplo?
Exatamente.
A cultura é algo que nos vem a servir, mais cedo ou mais tarde. Serve para sermos cultos, para nos inserirmos na sociedade, para termos conversas mais civilizadas, para termos empregos melhores
Em que medida contribuiu o seu professor Rómulo de Carvalho, o poeta que todos conhecemos pelo pseudónimo de António Gedeão, para essa sua visão do ensino?
Contribuiu muito porque ele era uma pessoa muito organizada, mas ao mesmo tempo muito estimulante. Inconscientemente, assimilei muito da sua maneira de ser e de ensinar. Anos mais tarde, no centenário do seu nascimento [2007], quando fui ler os seus escritos pedagógicos, percebi que ele era muito a favor de um ensino orientado e muito dirigido pelo professor, mas ao mesmo tempo um ensino muito estimulante. Ele era completamente contra esta ideia do ensino centrado no aluno, que não faz sentido absolutamente nenhum.
Antes de serem cientistas, os alunos têm de construir as fundações do conhecimento com a tal orientação do professor?
Não é possível ser cientista sem ter passado por uma formação muito aturada, de muitos anos de trabalho. Às vezes, pensa-se que os alunos são pequenos cientistas e não é verdade, porque a psicologia cognitiva mostra que os alunos têm esquemas de pensamento muito diferentes dos esquemas de pensamento dos cientistas. O professor é alguém que está ali para os ajudar a avançar.
Quais as características principais de um bom professor?
Um bom professor tem de dominar bem a matéria que ensina, porque se tiver hesitações nunca será eficiente. Tem de ser organizado a ensinar, de forma a que os alunos percebam como as coisas estão a evoluir. E tem de ser sensível aos alunos, respeitá-los e dialogar com eles, para os desafiar a irem mais longe, sempre com o currículo em mente. Na formação atual de professores, aproveito para acrescentar, seria bom modernizar os conhecimentos de psicologia e pedagogia.
A pandemia ajudou a reforçar as suas convicções sobre o papel central do professor?
A pandemia trouxe uma experiência indesejada, mas que mostrou que o ensino pelo professor em sala de aula é muito mais eficiente do que o ensino online. Não vale a pena estar a citar nomes, mas lembro-me que houve pessoas a defenderem em artigos nos jornais que seria uma fantástica oportunidade para os alunos tomarem em mãos o seu próprio conhecimento. Verificou-se que foi um desastre.
Até que idade dos alunos os professores têm de oferecer essa orientação? Na universidade, já caberá uma iniciativa e responsabilidade maior ao aluno…
Com certeza. À medida que vão crescendo, os alunos têm maior responsabilidade, mas o ensino dirigido pelo professor é sempre mais eficiente. Vamos supor que quero aprender a falar chinês. Já tenho mais de 70 anos, mas não vou aprender pela descoberta. Tudo depende da etapa em que estamos. Em relação à língua chinesa, estou no ponto zero. Como não sei dizer uma palavra em mandarim, preciso de um ensino dirigido. Depois, a partir de certa altura, se calhar, já não precisarei. Há uns anos, estudei italiano. Nos primeiros tempos, tive um professor que me dirigia e, depois, comecei a escrever e a ler e tornei-me autónomo.
Talvez seja demasiado simplista, mas o que está em causa não é aprender primeiro a teoria antes de passar à prática?
Eu não poria as coisas assim. Depende. Aprendemos a andar com a prática, não é com conhecimento teórico. Também nascemos completamente preparados para falar, e o simples contacto com um meio falante, com uma família, com a rua, leva-nos a conseguir falar. Já para aprender a ler, não basta mergulhar numa biblioteca. Não é biologicamente primário, é cultural, tal como a maioria das coisas que se passam na escola. Há uma transmissão de conhecimentos que não é feita automaticamente.
É um erro aprender só o que nos poderá vir a ser útil no futuro?
É, desde logo porque não sabemos o que nos vai ser útil ou não. Só descobriremos mais tarde. “Ah, para que serve ler Camões?” A cultura é algo que nos vem a servir, mais cedo ou mais tarde e sem sabermos como. Serve para sermos cultos, para nos inserirmos na sociedade, para termos conversas mais civilizadas, para termos empregos melhores, etc.
Que impacto tiveram a Internet, a Wikipédia ou os motores de busca na procura e assimilação do conhecimento?
É muito difícil responder. Diria que são instrumentos que nos ajudam muito a conhecer o mundo, e de forma imediata, e nesse sentido são fantásticos. O impacto negativo vem da ilusão de que a Internet pode substituir a escola e de que a tecnologia pode substituir o professor. Precisamente, porque na Internet as informações aparecem dispersas. Quanto mais conhecimentos tivermos, melhor entendemos o que a Internet nos responde. Se dissermos a um francês em que data foi a Batalha de Aljubarrota, ele fica na mesma. O que vamos buscar a partir de uma informação depende da cultura que tivermos.
Os resultados dos alunos portugueses nos testes internacionais refletem a capacidade de interligar conhecimentos?
Eu julgo que sim, mas são testes diferentes. O PISA é um teste de competências, mas é muito curioso que os países que têm melhores resultados são os que têm o ensino dirigido por conteúdos, ou seja, por conhecimento.
Porque acha que isso acontece?
Porque as competências derivam do conhecimento. Como dizia um físico famoso, não há nada mais prático do que uma boa teoria. O importante é perceber as coisas. Quando se entendem, conseguimos desenvolver a sua aplicação. E os melhores países no PISA são sempre os que não têm o ensino orientado por competências, mas sim pelo conhecimento. Já o TIMSS é diferente, muito ligado ao currículo, no caso ao conhecimento da matemática e das ciências.
A sua inclinação para quantificar e medir conhecimentos não advirá também do facto de ser, afinal de contas, um matemático?
Acredito que sim, mas há muita gente da área da filosofia ou da literatura que também é a favor da avaliação de conhecimentos e da sua quantificação. A quantificação é quase universal na Ciência. Claro que há coisas que não se quantificam, mas o quantificar ajuda muito a progredir e a saber em que pontos as coisas estão, até por comparação com outros países. Infelizmente, em Portugal, neste momento, os únicos instrumentos fiáveis são os inquéritos internacionais, porque os exames nacionais foram destruídos e o que não foi destruído tem tido um grau de rigor e de ambição muito variáveis.
O Governo ainda em funções, embora demissionário, reintroduziu neste ano letivo provas nacionais no final dos dois primeiros ciclos, embora não contem para a nota final. É uma boa medida?
É uma medida que vai no bom sentido, mas ainda falta muito.
O quê?
Falta que essas provas sejam muito claramente associadas ao currículo, falta que tenham algum peso no percurso escolar dos alunos e falta que sejam consistentes, teremos de ver como vão ser feitas.
Quando fala do currículo, refere-se à matéria que tem de ser dada nas aulas.
Sim, à matéria que deveria ser dada e assimilada pelos jovens e que às vezes não é. Noutras vezes, saem perguntas nessas provas que não estão tão ligadas ao currículo como deveriam estar e que não estão tão associadas ao nível de exigência curricular que se deve ter.
Quantas vezes já lhe disseram que tem uma visão antiquada da educação?
Por vezes, as pessoas dizem ou insinuam isso, mas é exatamente o contrário. Porque esta visão romântica da educação, do ensino centrado no aluno, do ensino pela descoberta, tem 100 ou 200 anos e nunca funcionou. Aquilo que a Ciência moderna nos traz, seja através dos inquéritos internacionais, da psicologia ou de estudos sobre educação, é como deve ser organizado o ensino explícito, exatamente o contrário do ensino centrado no aluno.
No epílogo do livro, questiona-se sobre se a educação vai mudar para melhor em Portugal e escreve que vai ser difícil, acrescentando: “A dificuldade está na tremenda resistência ideológica e corporativa que bloqueia persistentemente o progresso.” Pode explicar melhor?
O que é preciso fazer já se sabe. É um currículo mais exigente, mais centrado no conhecimento, é uma avaliação mais exigente, mais rigorosa e mais fiável, é apoiar os alunos com mais dificuldades. Agora, o que se discute habitualmente não é isso. É o salário dos professores, a tecnologia na sala de aula, que também são importantes, mas não são as fundamentais. E isso é triste.