“Um vírus é um bocado de ADN embrulhado numa proteína, ou uma espécie de entrada USB que distribui o código na célula. Quanto mais sofisticada for a programação de vírus, mais o céu é o limite”

Foto: José Carlos Carvalho

“Um vírus é um bocado de ADN embrulhado numa proteína, ou uma espécie de entrada USB que distribui o código na célula. Quanto mais sofisticada for a programação de vírus, mais o céu é o limite”

Nasceu no Canadá, formou-se em Biologia na Universidade de Calgary, na província de Alberta, mas a sua casa é na Califórnia, que tem “um clima bem mais ameno, comparado com o frio da minha terra natal”, afirmou o investigador, logo no início da conversa, que haveria de durar uma hora.

Na semana passada, Andrew Hessel esteve em Portugal, a convite da Sociedade Francisco Manuel dos Santos (SFMS), para uma palestra no Encontro Changers, programa dirigido a quadros superiores das empresas do grupo e convidados. Cientista, futurista, inventor e empreendedor, ele é também um pioneiro no campo da Biologia Sintética.

É difícil saber de onde vem o apelo pela maquinaria e os processos, já que ninguém na família, nem mesmo os dois irmãos, manifesta interesse ou trabalha nesse campo. Na infância, era vê-lo a desmontar com afinco tudo o que lhe davam, a devorar livros sobre o funcionamento das coisas e a ver filmes de zombies. O especialista em tecnologias biológicas e biossegurança e cofundador da escrita do Projeto Genoma defende que as células são computadores vivos, que o ácido desoxirribonucleico (ADN) é uma linguagem de programação.

Fomos ao seu encontro no Oceanário de Lisboa. Na sala, com vista para o Tejo e o Teleférico de Lisboa, com um indesmentível entusiasmo, o ex-presidente da Humane Genomics falou-nos daquilo que mais o apaixona: desenvolver vírus artificiais de precisão que podem ter várias aplicações nas áreas da saúde e do ambiente, entre outras. Aos 61 anos, o cofundador da Humane Genomics – que usa a engenharia de vírus sintéticos para destruir células cancerígenas – lidera projetos inovadores na escrita do ADN, capazes de revolucionar as ciências da vida.

É conhecido por ser um homem dos sete ofícios no campo da Ciência. Como se define profissionalmente?
Apresento-me como presidente do projeto Genome Project-write (GPW), que desenvolve tecnologia, ferramentas e processos e explora a ética da escrita de genomas completos, ou seja, a programação de organismos. Mas sim, uso vários chapéus. Nuns casos sou divulgador, pois faço apresentações para grupos – como a que concluí na SFMS –, mas também sou escritor e estou sempre interessado em explorar novas tecnologias. Se ficar frustrado, dou início a novos negócios. O mais recente é uma empresa de engenharia de vírus, a Humane Genomics, que desenha vírus a partir do zero, usando ferramentas da Biologia Sintética para construir vírus oncolíticos, que infetam células cancerígenas para as eliminar. E, além disso, sou pai e faço o melhor que sei para compreender os humanos.

Mas quando preenche a declaração de impostos, qual é a profissão que elege?
[Risos.] Para simplificar, descrevo-me com termos generalistas como cientista ou investigador. Há vários anos que não trabalho em laboratório. O último foi para a companhia de software Autodesk Life Sciences, de programas de design computacional. De 2012 a 2018, estive no grupo precursor da Autodesk, que criava ferramentas de software para desenhar sistemas biológicos.

Como é que um biólogo de formação sai da indústria biofarmacêutica para acabar a fazer escrita do ADN, vai para duas décadas?
Comecei na biologia celular e na biogenética porque, desde pequeno, queria perceber como as coisas funcionavam e destruía tudo o que me davam para compreender o mecanismo, e adorava quando me davam livros sobre isso como prendas de Natal. Quando chegou a altura de decidir o que estudar, a Biologia foi uma escolha fácil e natural: era divertido, misterioso e parecido com os computadores e uma via para descobrir os processos da vida nas suas componentes individuais. Cada pessoa tem 40 triliões (milhões de mil milhões) de células e, como tinha conhecimentos de computação, dediquei-me à bioinformática, recolhendo e analisando informação genética. Gosto das coisas organizadas e de criar bases de dados. A fase inicial da minha carreira foi a sequenciar ADN, ou seja, a leitura de genomas, que não é mais do que digitalizar o programa de um organismo. Quando o genoma humano ficou completo, o meu foco foi para o polo oposto: se pode ser lido, porque não analisá-lo e programá-lo?

Nas suas palestras diz que as nossas células se comparam com uma rede de computação programável. Quando mudou o foco para essa área?  
As células são as formas de vida mais simples. O código genético é semelhante a um sistema computacional: há portas de entrada (input), processamento de moléculas (bits eletrónicos/software) e portas de saída (output). Há formas de sintetizar o ADN. No ano 2000, as tecnologias de sintetização de ADN eram incipientes e eu queria descobrir quais eram as portas que se abriam ao programar esses sistemas, e eu estava na indústria biofarmacêutica, que era estimulante do ponto de vista intelectual e financeiramente gratificante. A cada ano, a investigação de fármacos tornava-se cada vez mais morosa e acessível apenas aos países ricos, enquanto os computadores ficavam mais rápidos e menos dispendiosos. Não percebia esta divergência, já que os materiais biológicos se montam sozinhos. Em 2003 fiquei frustrado e, após sete anos neste campo, aproveitei a reestruturação da empresa onde estava para sair do ramo. Não sabia o que fazer e fui para a Tailândia, onde fiquei durante dois meses parado, a pensar na vida e a curar o meu alcoolismo. Tinha feito 40 anos e sabia que gostava de escrever código e de programação celular. A motivação de sintetizar e imprimir moléculas de ADN coincidiu com a altura em que isso passou a chamar-se Biologia Sintética. Quando voltei aos EUA, comecei a fazer contactos durante alguns anos. Avancei então para a sintetização de genomas muito pequenos, os vírus, que são como USB: movem pedaços de código de um organismo para outro e, nesse sentido, são agentes da evolução. 

Com a Natureza a gerar novos vírus, estamos, talvez, no pior momento em matéria de risco. É preciso investir na deteção de novas ameaças virais e agir de forma mais célere com as ferramentas de Engenharia Biológica de que dispomos

Em que consiste a escrita do projeto genoma (GPW)?
Foi estabelecido em 2015. Tinha-me candidatado a uma bolsa de duas organizações, a American Association for the Advancement of Science, que publica revistas científicas, e The Lemelson Foundation, que financia a invenção e eles andavam à procura de embaixadores em R&D [Research and development]. Propus-lhes democratizar a engenharia genética. Na mesma altura, havia um grupo interessado em sintetizar o genoma de leveduras, um organismo unicelular mais sofisticado do que a bactéria. Na quarta reunião, com 100 cientistas na sala e um  repórter, eu, com a minha natureza organizada e provocadora, perguntei: de que vale ter a engenharia genómica mais sofisticada do planeta se ninguém souber que o fazem? Porque não criar um projeto para sintetizar o genoma humano? É que quando começámos a ler o ADN, em 1990, não havia tecnologia para isso, mas o projeto agregou muita gente e mil milhões de dólares em financiamento para melhor compreender a biologia, na saúde e na doença. Escrever um genoma humano tem potencial para ser uma ferramenta que consegue corrigir qualquer doença genética.

Nada disso tem que ver com clonagem, portanto.
Não se trata de criar um bebé, mas de como escrever através de uma infinidade de pares de códigos genéticos, programar e cultivar células humanas em laboratório. 

É disso que fala no livro The Genesis Machine: Our Quest to Rewrite Life in the Age of Synthetic Biology, que há dois anos foi New Yorker Best Book?
Sim, o projeto do genoma humano envolveu mil cientistas, mas não obteve financiamento suficiente para prosseguir. Veio a pandemia e escrevi o livro com Amy Webb (futurista e professora de Previsão Estratégica). No livro exploramos cenários sobre as possíveis implicações da Engenharia Biológica e foi bastante divertido.

Fala da escrita de códigos genéticos como quem se dedica à composição musical.
Sim, é como escrever programas de computador, queremos que a célula faça alguma coisa e encará-la como uma fábrica. Pessoalmente, prefiro olhar para ela como uma impressora 3D, capaz de ser programada para produzir algo biológico: uma proteína, um grupo de proteínas, e, com a escrita suficiente, pode dar lugar a um organismo.

É pioneiro na engenharia de vírus sintéticos. Como se fabricam?
Um vírus é um bocado de ácido desoxirribonucleico embrulhado numa proteína, ou uma espécie de entrada USB que distribui o código na célula e ela começa a manufaturar vírus. Se o desenharmos de raiz, é possível programar o pedaço de código que o vírus envia para fazer uma vacina ou produzir uma terapia genética. Quanto mais sofisticada for a programação de vírus, mais poderemos afirmar que o céu é o limite.

Como é que reprogramar organismos para fazerem coisas que não fariam no seu estado natural pode melhorar as ciências da vida?
Os vírus são como camiões de entrega de material genético e, uma vez que se consegue criar o programa, pode-se desenhar o que aquele material genético irá fazer numa célula. Há dez anos, usando o que aprendi na síntese do genoma de um vírus para desenvolver um antibiótico, comecei a trabalhar num vírus sintético que infeta a bactéria Escherichia coli (E. coli). Queria produzir um vírus oncolítico que, ao entrar numa célula cancerígena, crescesse nela e a matasse, mas inócuo para uma célula normal.

Mas já é uma realidade no campo das terapias ou ainda está em investigação?
Os vírus oncolíticos foram aprovados por diferentes grupos para certos tipos de cancro e, no caso do nosso, para o cancro hepático. A fase de desenvolvimento começou há cinco anos e, pelo que sei, está a ter bons resultados. Na pandemia, deixei a presidência da Humane Genomics, passei a ser apenas conselheiro e voltei com a família para a Califórnia.

Ainda é cedo para falar de terapias personalizadas para outros tipos de cancro?
Sim. O lado cativante de programar vírus é poder mudá-los muito depressa e redesenhá-los para tipos de cancro e de pacientes. O problema está no sistema de desenvolvimento de fármacos, assente no registo “um tamanho único serve para todos” e que não se ajusta à medicina de um-para-um.

O que pode dizer sobre esta abordagem aos doentes oncológicos, sem criar falsas expectativas?
O combate ao cancro tem sido mais moroso porque não é como as infeções tratáveis com antibióticos. Não há cancros iguais: as suas células funcionam mal e infetam o seu corpo, não são destruídas e o seu sistema imunitário não as reconhece. Desenvolver fármacos para uma pessoa através de uma plataforma tecnológica pode ser um ponto de viragem.

Porque é que as doenças oncológicas estão a aumentar nas faixas etárias sub-50?
Com tantas mudanças a ocorrerem no mundo, nas últimas gerações, é surpreendente que não haja mais doentes de cancro. Não gosto de estatísticas, elas não importam nada a quem se confronta com um diagnóstico e só anseia pela melhor terapia.

Pode prever quando é que a engenharia de vírus sintéticos será realidade?
Os reguladores começam a reconhecer que é possível construir plataformas, e não produtos, para tratamentos personalizados com células imunes (ou T) retiradas do corpo e geneticamente modificadas, que reconhecem o cancro e o matam. O problema das terapias CAR-T [células T quiméricas do recetor de antigénio] é o custo, que ronda o meio milhão de dólares. Por agora, posso dizer que será um processo longo até que os custos baixem. Dito isto, começamos a ver outras abordagens um-para-um no campo das vacinas contra o cancro: analisam-se as células cancerígenas, comparam-se com as normais e geram-se peptídeos sintéticos, ou fragmentos proteicos específicos, para os antigénios do cancro. E estimula-se o sistema imune para combater ou prevenir o cancro. Essas vacinas personalizadas estão disponíveis, mas não em grande escala. Precisamos de mais dados e há que lembrar que cada resposta imunitária é única.

O que é que está a fazer agora?
A desenvolver ferramentas para sintetizar e montar ADN de forma a que a programação seja mais célere e acessível. Lidero uma Xprize [organização sem fins lucrativos que organiza competições com a meta do desenvolvimento tecnológico] para a próxima geração de síntese de ADN. Estamos à procura de financiadores.

Como garantir que a Biologia Sintética – a escrita de ADN – não é usada para maus fins?
Vivemos num mar de vírus. Muitos deles não nos fazem mal, outros sim, como o da gripe ou o vírus sincicial respiratório ou o ébola. Sempre houve surtos, mas há 100 anos que não tínhamos uma pandemia como a do SARS-CoV-2. O mundo parecia estar preparado para enfrentar esse cenário, mas os vários programas de vigilância existentes não correram tão bem como se esperava. Precisamos de defesas melhores. Contudo, o aperfeiçoamento das ferramentas da Engenharia Biológica não se reflete em investimentos suficientes para que se operem mudanças significativas no sistema. Com a Natureza a gerar novos vírus, estamos, talvez, no pior momento em matéria de risco. É preciso investir na deteção de novas ameaças virais e agir de forma mais célere com as ferramentas de Engenharia Biológica de que dispomos, pois quando uma pessoa dá entrada num hospital, pode já ser um pouco tarde.

O que sugere que se faça, em concreto?
Vai ser necessário reconfigurar o sistema de saúde. A programação da biologia abre muitas oportunidades, e tem benefícios incríveis na medicina, mas também pode ser aplicada noutras áreas, como sejam a investigação e o ambiente. 

O que quer dizer quando afirma que estamos a passar da seleção natural para a Engenharia Biológica?
No mundo natural, existem a reprodução e a sobrevivência, mas as mutações são lentas. A seleção artificial permite-nos guiar o processo evolutivo, o que resultou, por exemplo, em diferentes raças de cães ou espécies de milho. Agora podemos criar organismos, sejam plantas ou animais. Com a Engenharia Biológica, conduzimos a nossa intenção. Com as estratégias que temos ao nosso alcance, conseguimos levar um organismo a ser aquilo que queremos que ele seja.

E como se lida com as questões éticas?
Modelar um organismo não é uma preocupação ética, mas ela está a expandir-se também. Por exemplo, já não se fazem experiências com primatas e procura-se causar o menor dano possível. Porém, no que se refere aos humanos, essa questão existe e gera alguma controvérsia.

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