Neil Price é um arqueólogo britânico, nascido em 1965. Com apenas 18 anos, começou a trabalhar para o Museu de Londres, em escavações romanas e medievais à volta da capital inglesa, altura em que ingressou numa carreira académica em torno da arqueologia e dos estudos da Era Viking. Atualmente, mora na Suécia e é professor responsável pela cátedra de Arqueologia na Universidade de Uppsala, onde acaba de receber financiamento para a criação de um grande centro de estudos precisamente sobre aquela era. Tem sete livros publicados, quase todos relativos a esse universo que investiga há três décadas. O mais recente, Vikings – A História dos Povos do Norte, foi editado em Portugal neste verão, pela editora Crítica, e serviu de pretexto para esta conversa em torno da importância do povo viking na Europa.
Como começou a interessar-se pelos vikings?
Interesso-me por arqueologia desde que me lembro, mas o meu foco específico pelo universo dos vikings remonta ao final da década de 1970, quando tinha 14 ou 15 anos. Na altura, foram exibidas na televisão britânica duas excelentes séries sobre a Era Viking, ao mesmo tempo que tinha começado a ler as sagas islandesas. De alguma forma, tudo se encaixou. Depois, esse interesse continuou a crescer e eu comecei a dedicar-me seriamente ao tema no final da adolescência.
Como escreve logo no arranque do livro, estamos habituados a ver os vikings mais pelo seu lado bárbaro e violento. Porquê?
A violência está presente em várias narrativas alheias sobre os vikings desde o início, pois era a ela que se dava ênfase nos registos de invasões criados pelas pessoas que por elas eram afetadas (o que não significa que essa violência não fosse real). Nos séculos seguintes, os vitorianos e outros povos começaram a acrescentar uma nota de glória a isto, celebrando os nórdicos como modelos para a força dominante dos impérios europeus, uma posição com evidentes conotações de colonialismo e racismo; isto atingiu o seu ponto mais baixo com os nazis. Nas décadas mais recentes, esta ênfase continuou através da cultura popular, embora geralmente sem intenção política deliberada; mas, ao mesmo tempo, a violência “natural”, e fictícia, dos nórdicos continua a ser mantida como uma ideia pelos extremistas. A Era Viking foi uma época violenta, é verdade, mas isso está muito, muito longe de ser representativo da realidade completa.
Tendemos a associar a Era Viking à ideia de ataque, de conquista, de invasão. A alma dos vikings era realmente de aventura ou eram ataques mais planeados, com estratégia?
Nenhuma cultura é intrinsecamente aventureira, e as explorações nórdicas tinham muitas vezes motivos bastante mundanos, se é que sabiam para onde iam – o que nem sempre é certo. As grandes ações militares, como as incursões e as campanhas, exigiam certamente planeamento e estratégia, não eram acontecimentos aleatórios e espontâneos. Este cuidado e organização são a realidade por trás da imagem enganadora dos bárbaros selvagens.
Havia uma ambição de conquistar o máximo de território possível?
Não. No final da Era Viking, alguns dos reis dinamarqueses e noruegueses começaram a considerar verdadeiras ambições territoriais, mas mesmo estas eram relativamente limitadas no seu âmbito – o poder e as pessoas eram mais importantes do que a terra conquistada, em si.
Fala muito da importância da herança cultural dos vikings, de tudo o que deixaram nos países nórdicos, mas também no resto do mundo. Na Europa Ocidental, nomeadamente em Portugal, temos tendência para conhecer melhor o património das civilizações egípcia e grega. É apenas uma questão geográfica?
Não, é mais o facto de a herança da Antiguidade Clássica nunca ter desaparecido e ter sido referenciada e imitada na arte, na arquitetura, na cultura e na política desde sempre. Os vestígios físicos dessa época, em especial os grandes monumentos, também sobreviveram de uma forma que os edifícios de madeira dos vikings não conseguiram.
Quais são os principais legados culturais dos vikings na Europa atual?
É difícil responder a essa pergunta, mas penso que o mapa político é um deles. A Inglaterra é, pelo menos em parte, uma criação ou um legado das guerras vikings, tal como a província da Normandia, em França. Muitos aspetos dos costumes – como o conceito de “lei” no Norte da Europa – também têm origens aí. De um modo geral, porém, não me parece interessante estabelecer este tipo de ligações, até porque os vikings são muitas vezes mal utilizados e desviados para fins políticos.
Eram também viajantes. Quais foram as maiores marcas que deixaram no mundo em termos de arquitetura e edifícios?
Muito poucas, porque construíam muito em madeira, e o material não sobreviveu. Mas, para termos uma ideia do que perdemos, vejam-se os fantásticos salões reconstruídos em Lejre, na Dinamarca, e Borg, na Noruega. Penso que o maior legado “arquitetónico” está nos milhares de túmulos [aqui entendidos como montes de terra erguidos sobre uma ou mais sepulturas] que cobrem a paisagem escandinava, juntamente com as pedras rúnicas que ergueram. A paisagem escandinava apresenta vestígios claros sobre a forma como pensavam a relação entre os vivos e os mortos.
O capítulo do seu livro sobre os hábitos alimentares é muito interessante. De certo modo, os vikings foram os precursores do que atualmente entendemos por cozinha nórdica, que se baseia muito na recolha de alimentos. O que é que os cozinheiros de hoje podem aprender com a cozinha viking?
Não sou cozinheiro e, sinceramente, não faço ideia de como responder a essa pergunta. A cozinha viking não era propriamente inovadora; eles limitavam-se a utilizar o que tinham, provavelmente de forma criativa, mas normalmente apenas para obter o suficiente para comer… Muito peixe, muitas bagas e ervas, muita caça. E papas de aveia.
A cultura popular, nomeadamente as séries e os filmes lançados nas últimas duas décadas, ajuda-nos a conhecer os hábitos e as vivências dos vikings? Ou apenas ajuda a cultivar o interesse pelo assunto?
Sem dúvida que cultiva o interesse, e, só por isso, os estudiosos dos vikings precisam de se envolver com eles no trabalho de pesquisa, preparação e escrita. Muitas das representações da cultura popular são, de facto, bastante boas, embora isso não seja verdade no caso dos videojogos. A série televisiva Vikings [seis temporadas, entre 2013 e 2020] tratou-os como uma cultura viva e levou-os a sério, quase pela primeira vez, introduzindo um lado dos vikings diferente dos clichés das invasões e raramente visto: vida familiar, romance, cuidados domésticos, subsistência, economia e, não menos importante, um enfoque na vida na Escandinávia e não apenas no estrangeiro. Os vikings eram também retratados como indivíduos com as suas próprias ideias e objetivos, e não como uma massa homogénea. Temas como a sexualidade e o género foram levados a sério, há muitas crianças presentes na série e as personagens envelhecem ao longo do tempo. Também gostei da forma como as grandes ideias sobre o poder e a religião foram debatidas – estes vikings pensam e têm opiniões. Fico mais contente de ver tudo isto do que preocupado com eventuais imprecisões no vestuário ou na História. Há igualmente outras obras, como o filme The Northman [O Homem do Norte, de 2022]. Trabalhei nele como consultor; por isso, sou parcial, mas penso que é uma representação soberba do mundo e do pensamento da Era Viking.
Na sua opinião, são fiéis à História?
A fidelidade varia de série para série ou de filme para filme, mas, no geral, os acontecimentos históricos são bastante imprecisos, sobretudo quando se misturam personagens reais que viveram, de facto, com um século de diferença – Vikings: Valhalla [sequela de Vikings, série estreada em 2022] faz isso muitas vezes. As tendências sociais e políticas são frequentemente muito simplificadas, mas também é verdade que a maioria das séries contém conteúdo correto, a par de partes menos exatas.
Quais são os maiores erros que o mundo em geral comete em relação aos vikings?
É errado pensar que toda a gente na Escandinávia era viking. Os verdadeiros invasores eram apenas uma parte muito, muito pequena da população. A maioria das pessoas eram agricultores, e a ideia de que os antigos escandinavos eram todos vikings é uma invenção inteiramente moderna, do século XIX. O outro grande erro continua a ser os capacetes com chifres: nunca existiram.
Como arqueólogo, qual foi a descoberta mais significativa que fez sobre os vikings na sua carreira?
Não sei se lhe chamaria uma descoberta – é mais uma ideia –, mas penso em duas coisas: reconhecer a importância da magia na vida e no pensamento viking e aplicar um conceito da investigação da pirataria sobre a forma dispersa como os exércitos vikings operavam (este último chama-se “hidrarquia”, e é complicado de explicar, desculpe…).
Fala de um esforço conjunto entre vários arqueólogos e académicos no terreno, e que só assim é possível fazer novas descobertas. Esta cooperação existe? Onde se situam as principais áreas de estudo da Era Viking?
Em termos gerais, sim, há uma colaboração alargada nos estudos vikings. Diria que os principais centros de investigação atuais estão em Uppsala, claro [risos, por ser onde Neil Price trabalha], Oslo, Copenhaga, Aarhus, Reiquiavique, York, Nottingham e Caen. Mas existem muitos mais, especialmente na Escandinávia. Na América do Norte e do Sul, há também vários académicos que se debruçam sobre os vikings, mas muito espalhados.
No livro, fala do cuidado com a aparência, o vestuário e as posses. Hábitos comuns a homens e mulheres. Mas, olhando para a História, temos tendência para associá-los apenas aos homens vikings. Porquê?
Bem, não tenho a certeza de que associemos os cuidados pessoais apenas aos homens vikings. Diria que, em geral, não associamos o estilo e a moda aos vikings. O estereótipo pinta, erradamente, uma imagem do bárbaro despenteado.
Por que razão há menos registos de mulheres vikings?
Não diria menos, pois elas aparecem muito frequentemente nas sagas. Se olharmos para os registos escritos por aqueles que entraram em contacto com os escandinavos (crónicas da corte, anais, etc.), não há muitas descrições de mulheres, seja onde for – estas sociedades eram patriarcais, e o seu registo documental reflete isso mesmo. Na arqueologia, porém, a vida das mulheres está tão presente como a dos homens.
Fala-se muito da importância das tecnologias avançadas nos estudos arqueológicos. Estas têm sido úteis na sua investigação? De que forma?
É difícil responder a essa pergunta, porque existem muitos métodos científicos diferentes e usamo-los a todos. A análise do ADN e a genómica são muito proeminentes neste momento e têm muitas utilizações – descobrir relações familiares entre os mortos enterrados, descobrir de onde vieram as pessoas e (até certo ponto) sugerir novos padrões de imigração e movimentos populacionais – embora seja vital lembrar que o ADN não está ligado à etnia.
Quais são os seus próximos caminhos de estudo?
Estou a escrever um livro sobre a diversidade na diáspora viking e acabei de receber financiamento para criar um Centre for the World in the Viking Age na Universidade de Uppsala.