Nasceu no Canadá, vive em Barcelona, estudou História da Educação e Filosofia, doutorou-se em Psicologia da Educação e é uma das principais vozes na área da educação infantil. À saída da palestra que deu na 31ª conferência anual da European Early Childhood Education Research Association, no Estoril, Catherine L’Ecuyer conversou com a VISÃO sobre aquilo que é preciso mudar na forma como abordamos a educação e o uso das tecnologias, se queremos proporcionar aos adultos de amanhã um espaço para crescerem e aprenderem a pensar.
Os temas e as investigações apresentadas nos seus livros (em Portugal, Educar na Curiosidade e Educar na Realidade, publicados pela Planeta) estão na ordem do dia, à escala mundial, sobretudo agora que começa a perceber-se que talvez seja a hora de mudar a direção do leme. L’Ecuyer defende que não há receitas para educar, desmonta mitos e destaca a importância da qualidade da interação pessoal com a criança, que nenhuma tecnologia pode substituir.
O que é educar na curiosidade?
Nas conferências e palestras, costumo lançar a seguinte pergunta: “Quando acordam de manhã e olham para quem está ao lado, sentem um ‘Oh!’ de espanto?” Isto suscita o riso na plateia. As pessoas dão-se conta de que, ao tornar-se rotina, a presença de quem as rodeia deixa de suscitar espanto. Curiosidade é não tomar nada por garantido e observar as coisas como se as víssemos pela primeira, ou pela última, vez. Esta definição, que envolve o desejo natural de conhecer e o sentido de agência, pressupõe que o motor da descoberta está na criança.
Isso não é óbvio para quem tem a função de educar?
Nem sempre. Ainda se encara o processo de aprendizagem com ativismo pedagógico, ou seja, tem de haver atividade, estímulos exteriores às crianças. A abordagem que defendo alinha-se com a dos filósofos gregos: Platão afirmava que o espanto era o princípio da Filosofia, Aristóteles dizia que o desejo de conhecer faz parte da natureza humana e Tomás de Aquino dizia que a admiração é esse desejo de conhecer. Estas ideias estão a ser resgatadas e introduzidas na educação.
Diz-se que é preciso uma aldeia para educar uma criança, mas na aldeia global parece não haver consenso quanto à melhor maneira de educar. O que se passa?
Quando escrevi sobre a educação para a curiosidade, em 2014, e sugeri prudência no uso das novas tecnologias, encontrei uma mentalidade apocalíptica, em que não estar rodeado de equipamentos digitais era visto como desastroso. Na altura, recebi comentários negativos, diziam que a minha visão era radical e exagerada. Uma década depois, publicaram-se vários estudos que me deram razão.
A que se refere, em concreto?
Cometemos alguns erros. Um deles foi introduzir a tecnologia aos filhos em idades precoces. O outro consistiu em deixar que as novas tecnologias entrassem na sala de aula sem antes colocar duas perguntas à indústria. Estas ferramentas fazem sentido, do ponto de vista educativo? E têm, ou não, efeitos colaterais? O duplo ónus da prova foi deixado para os investigadores. Acontece que os estudos sérios e com rigor são dispendiosos e demorados e só na última década foi possível estabelecer uma correlação entre o consumo de redes sociais e da internet e o impacto que têm na atenção e na saúde mental. Daí que vários países estejam a recuar neste campo e a não permitir smartphones e tablets nas aulas.
Foi isso que motivou escolas públicas americanas a processarem as “big tech”, alegando que eram as principais responsáveis pela crise de saúde mental nos jovens?
É bem possível. O que posso dizer é que o meu livro Educar para a Curiosidade tem vindo a aumentar as vendas em vários países, tal como o volume de convites para palestras. Muitos pais me escrevem a perguntar como podem reverter o cenário atual, mas o mal está feito. Costumo divulgar as recomendações da Sociedade de Pediatria do Canadá e da Academia Americana de Pediatria: até aos 2 anos, não expor as crianças aos ecrãs; dos 2 aos 5, menos de uma hora diária e ter conteúdos de qualidade; as outras faixas etárias ainda estão a ser alvo de estudos, mas já começa a haver dados sobre o tempo de permanência nas redes sociais e a depressão nos jovens. Não vejo qualquer problema em que uma criança use um telemóvel nos transportes ou quando está fora de casa. Já o smartphone, pelo acesso à internet e às redes sociais, equivale a deixar os filhos num bairro perigoso à noite: é perigoso.
Tem quatro filhos. Como é que a família gere esses dispositivos?
Em casa existem dois telemóveis, de uso comum, e só para fazer chamadas. Quando a minha filha mais velha tinha 16 anos, a guerra foi com o WhatsApp, a via preferencial para comunicar entre amigos. A solução foi usar um telefone em casa, sem cartão SIM e com acesso a WiFi, para os mais crescidos (16 e 17 anos). A mais velha fez 18 anos em janeiro e terá um smartphone em setembro.
Acredita que essa será a nova tendência educativa?
A melhor forma de prepararmos os nossos filhos para o online é pelo offline, porque as crianças só desenvolvem qualidades como a determinação, o autocontrolo e a noção do que é relevante quando têm experiências na vida real, com pessoas de carne e osso.
O que diferencia o seu método de outros, como o Montessori e o Waldorf, por exemplo?
Defendo uma abordagem orientada para o crescimento pessoal dos alunos e da comunidade educativa, inspirada na filosofia clássico-realista – que não é mecanicista nem construtivista – e centrada na curiosidade e na transmissão do conhecimento e da cultura.
Quais as reações às suas ideias, empresas de tecnologia incluídas?
Mais de 90% são positivas, mas o meu marido diz que quem vai às minhas palestras concorda comigo! Na área da indústria nunca me contactaram. No início recebi mensagens de ódio, embora não me tenham apresentado evidências que confirmassem os seus argumentos. E, nos últimos dois anos, essas manifestações deixaram de ocorrer.
Na sociedade digital, o que se entende por “bons pais”?
Se os pais cometem erros é porque não sabem fazer melhor, mas estão atentos. Ultimamente, noto que estão mais interessados em conhecer novas formas de educar e em explorar outras soluções. Prova disso são os 400 pedidos anuais que recebo para fazer palestras em congressos, universidades, escolas e autarquias.
Porque afirma que o uso de ecrãs na sala de aula é um fetiche, já que se pensa que contribuem para uma educação personalizada?
Há alguma confusão acerca do que é a educação individualizada e a personalizada. Esta pressupõe que seja “com uma pessoa” e essa decisão compete aos pais e às escolas, não às empresas que tendem a impor o seu modelo económico no ensino.
E se os estabelecimentos de ensino adotarem a regra de usar computadores e afins?
Pôs o dedo na ferida! Não imagina a quantidade de pais que me colocam essa questão. Geralmente, quando discordam da política adotada pela escola, é frequente ouvirem que são os únicos a reclamar. Digo-lhes que não estão sozinhos, que podem pressionar a escola ou optar por outra, mais alinhada com aquilo que acham melhor para os seus filhos. É difícil, porque há muitos estabelecimentos de ensino a seguir esse caminho, mas temos de ser suficientemente fortes para traçar uma linha vermelha que a indústria tecnológica não pode ultrapassar, de forma a que os interesses económicos não se sobreponham aos das crianças e da finalidade da educação.
Mas pode argumentar-se que quem não adere fica para trás, a braços com a iliteracia digital.
É um tecnomito. Li um artigo que testava a veracidade do fosso [gap, em inglês] digital, em que se partia do pressuposto de que a igualdade de acesso faria desaparecer esse fosso. Os resultados de um estudo publicado em 2015, Students, Computers and Learning, deixaram claro que esta teoria não é suportada pela evidência científica. Além disso, há investigações a demonstrar que o uso massificado da tecnologia em meios socioeconómicos desfavorecidos faz com que as pessoas fiquem mais permeáveis ao abuso dos dispositivos, na medida em que lhes faltam elementos culturais e de contexto, essenciais para interpretar e selecionar a informação. As famílias dos executivos de Silicon Valley têm mais tempo para estar com os filhos, relações interpessoais com qualidade e colocam os filhos em escolas sem estes dispositivos.
A desmotivação e o défice de atenção têm que ver com isso?
A causa desses problemas está na abordagem comportamental aplicada à educação. A tecnologia condiciona a criança, dá-lhe estímulos intermitentes para obter recompensa, o que requer que ela passe cada vez mais tempo nesse registo. O locus de controlo não está na criança, é-lhe retirado o sentido de agência.
No seu mais recente livro, fala de neuromitos. Pode mencionar alguns?
Dizer que o período crítico para aprender se dá até aos 3 anos, por exemplo. Isto aplica-se ao desenvolvimento. Na aprendizagem, que envolve leitura ou fazer contas, importam os períodos ótimos. Outro mito prende-se com o ambiente sensorial, que é suposto ser rico: a criança é bombardeada com estímulos porque se presume que se não for estimulada não vai, digamos, aprender a andar, o que não é verdade. Nos dois casos, adota-se uma lógica behaviorista (comportamental) em que o motor é externo, em vez de estar dentro. Maria Montessori [pedagoga italiana] dizia que fazer pela criança o que seria ela a fazer é substituir-se a ela, ou seja, é cancelá-la.
Que lugar têm os jogos digitais interativos, feitos para exercitar a inteligência e aprender melhor?
É behaviorismo (comportamentalismo) puro! O conhecido programa Brain Gym foi considerado uma fraude pelas autoridades americanas em neurologia desde os anos 1970, o que deita por terra o conceito de estimulação precoce. O mesmo para os estilos de aprendizagem baseados nos hemisférios cerebrais: o cérebro funciona como um todo e não por partes. A abordagem mecanicista não funciona porque os seres humanos têm livre-arbítrio e motivação interna, precisam de compreender o que fazem e porque o fazem, e para isso não há receitas.
E o que dizer dos rankings das escolas?
O problema dos rankings é o critério que está na sua base servir de bitola para todos, com prejuízo da diversidade. Em Espanha, por exemplo, ganham-se quatro pontos se houver tablets; todas as escolas vão querer isso. Quem faz os rankings? E em que assentam os parâmetros? Não há reflexão e nem evidências científicas neste campo.
O que devemos saber sobre o funcionamento do cérebro infantil e da sua relação com o digital?
Se as crianças forem expostas a um ecrã antes dos 3 anos, não são capazes de transpor uma imagem a duas dimensões para o mundo tridimensional. Até aos 5, aprendem através das experiências sensoriais e da interação com outras pessoas, que envolve uma história. Se não tiver acesso a isso, a memória biográfica fica empobrecida, o que afeta o sentido de identidade.
Tem algum projeto em curso, relacionado com este assunto?
Este ano criei a Fundação CLE, em Espanha, e lancei uma pós-graduação em Educação Clássica para Professores com início em setembro do próximo ano, e já tenho portugueses inscritos. A ideia não é dizer às pessoas o que devem fazer, mas oferecer alternativas, pois não há uma abordagem única. Voltando ao digital, não questiono a tecnologia, mas o que se faz com ela. Usemo-la, mas quanto mais tarde, melhor.